terça-feira, 10 de janeiro de 2012

texto base estudos linguisticos

Universidade Federal de Santa Catarina
Curso de Licenciatura em Letras-Libras
Introdução aos Estudos
Lingüísticos
Evani de Carvalho Viotti (USP)
Florianópolis, 2008
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Sumário
Introdução .......................................................................................................... 3
Unidade 1: O que é lingüística. Os conceitos de língua e linguagem................ 8
Unidade 2: A língua para Ferdinand de Saussure............................................ 14
2.1 Língua e Linguagem.............................................................................. 15
2.2 Língua e Fala......................................................................................... 17
2.3 Sintagma e Paradigma .......................................................................... 24
2.4 Sincronia e Diacronia............................................................................. 29
Unidade 3: A língua para Noam Chomsky ....................................................... 32
3.1 Exemplos concretos para esclarecer o que é a Gramática Gerativa ..... 36
3.2 O modelo de princípios e parâmetros.................................................... 41
Unidade 4: Lingüística geral: Fonética, fonologia e morfologia ....................... 45
4.1 Fonética e Fonologia ............................................................................. 45
4.2 Morfologia.............................................................................................. 52
Unidade 5: Lingüística geral: Sintaxe, semantica e pragmática ...................... 57
5.1 Sintaxe................................................................................................... 57
5.2 Semântica e Pragmática........................................................................ 62
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Introdução
Este curso tem o objetivo de apresentar brevemente algumas idéias e
noções que constituem o fundamento da lingüística contemporânea. Como
todos sabem, a lingüística é uma ciência cujas bases foram inteiramente
construídas a partir da observação e análise das línguas orais. Só depois da
segunda metade do século XX, com o trabalho pioneiro de William Stokoe
sobre a gramática da língua de sinais americana (ASL), é que as línguas de
sinais passaram a interessar os lingüistas. Vejam então a grande diferença:
enquanto as línguas orais estão sendo estudadas há 5000 anos, as línguas de
sinais estão sendo analisadas cientificamente há pouco mais de 40 anos!
Nesse curto período de tempo, a pesquisa sobre as línguas de sinais já
alcançou grandes avanços. Mesmo assim, o entendimento que os lingüistas
têm a respeito das propriedades e do funcionamento das línguas de sinais é
ainda muito pequeno, quando comparado ao que já se sabe sobre as línguas
orais.
Por isso, um curso como este, que apresenta os fundamentos da
lingüística geral, trata basicamente de teorias e propostas inicialmente
concebidas para analisar e entender as línguas orais. Os exemplos ilustrativos
dessas idéias e propostas são exemplos clássicos, que aparecem com uma ou
outra modificação, em todos os livros introdutórios de lingüística. Esses
exemplos, também, são retirados de várias línguas orais, em particular do
português brasileiro. Na medida do possível, procurei mostrar como as
questões relevantes para o estudo das línguas orais também são relevantes
para as línguas de sinais, ilustrando-as com alguns exemplos da língua de
sinais brasileira.
O curso de Introdução aos Estudos Lingüísticos se divide em cinco
unidades além desta Introdução. A primeira unidade é chamada “O que é
lingüística. Os conceitos de língua e linguagem”. Nessa unidade, vamos
definir a lingüística e ver que ela é uma ciência que faz interface com várias
outras ciências, como a psicologia, a biologia, a sociologia, etc.. Vamos ver
ainda como é difícil definir língua e linguagem de uma maneira única. Primeiro,
porque cada área de interface da lingüística vai ressaltar um aspecto da língua
em detrimento de outro. Assim, por exemplo, os lingüistas que trabalham na
área de interface entre a lingüística e a sociologia, de maneira geral, propõem
uma definição de língua bastante calcada em seus aspectos sociais. Os que
trabalham na interface entre a lingüística e a biologia preferem uma definição
de língua que destaque seus aspectos biológicos.
Além disso, a definição de língua e linguagem vai depender de cada
uma das mais variadas teorias lingüísticas. Cada uma delas se constrói a partir
de um entendimento particular do que é língua e do que é linguagem. É isso o
que vamos ver nas unidades 2 e 3. A unidade 2 se chama “A língua para
Ferdinand de Saussure”. Saussure foi um suíço que viveu até 1913, e é hoje
considerado o pai da lingüística moderna. Sua teoria sobre a língua, proposta
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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durante suas aulas na Universidade de Genebra, continua a ser estudada até
hoje, e está na base de muitas teorias mais recentes. Algumas das propostas
de Saussure continuam a ser aceitas por várias correntes de pensamento
lingüístico contemporâneo. Na unidade 2, nós vamos ver que Saussure tinha
uma visão eminentemente social de língua. Para ele, linguagem é uma
capacidade que os homens têm para criar e usar sistemas simbólicos, como a
língua, a dança, a mímica, a pintura, a escultura, o teatro, etc.. Entre esses
sistemas simbólicos, a língua se destaca como sendo a norma para todos os
demais sistemas.
Para Saussure, a língua é um sistema abstrato, que se opõe à fala. A
fala é a concretização da língua por um indivíduo. A fala é a língua posta em
uso. Para Saussure (e muitos outros lingüistas até hoje), a lingüística deve se
ocupar da língua, e não da fala. Ou seja, a lingüística tem por objetivo
descrever e explicar a língua, enquanto um sistema de valores. Cada elemento
da língua se define por um valor que o opõe a outro elemento. Os elementos
do sistema lingüístico são os signos. Os signos se constituem de um
significante e de um significado. O significado é um conceito, e o significante é
a representação mental que fazemos de um som (no caso das línguas orais),
ou um conjunto de gestos (no caso das línguas de sinais).
Os valores de cada elemento do sistema lingüístico, ao ver de Saussure,
podem ser computados em dois eixos: o sintagmático e o paradigmático. No
eixo sintagmático, calcula-se o valor de um elemento lingüístico pelo contraste
que ele estabelece com outro elemento que o preceda ou o suceda, em uma
cadeia linear. No eixo paradigmático, o valor de um elemento lingüístico é
computado pelo contraste que ele apresenta com outros elementos que
poderiam substituí-lo em uma determinada cadeia linear. Por exemplo, em
uma sentença como O João comprou batatas, no eixo sintagmático, o valor do
artigo definido o é calculado pela diferença que existe entre ele e o substantivo
João. Do mesmo modo, o valor de João é estabelecido pelo contraste que ele
estabelece tanto com o artigo o, quanto com o verbo comprou. No eixo
paradigmático, o valor do signo comprou é estabelecido pelo contraste que
existe entre ele e outros signos que poderiam ocupar seu lugar: vendeu,
comeu, amassou, escolheu, etc..
Uma outra contribuição importante feita por Saussure diz respeito à
distinção entre sincronia e diacronia. Estudos lingüísticos sincrônicos são
aqueles que observam a língua em um determinado estado, em um
determinado momento, sem se preocupar em entender como a língua chegou
àquele estado. Diferentemente, estudos lingüísticos diacrônicos são aqueles
que se preocupam em entender a trajetória histórica das línguas, a partir de um
determinado momento no tempo.
Apesar de a teoria saussuriana ter surgido no início do século passado,
grande parte de seus ensinamentos continua válida até hoje. Ela teve grande
repercussão na Europa, não só no desenvolvimento dos estudos sobre a
língua, mas também teve enorme importância na área da antropologia. Hoje
em dia, a teoria saussuriana continua a despertar grande interesse por parte de
muitos lingüistas.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Na unidade 3, intitulada “A língua para Noam Chomsky”, vamos estudar
uma outra teoria lingüística, que é conhecida, atualmente, pelo nome de
Gramática Gerativa. Essa teoria foi proposta por um lingüista americano
chamado Noam Chomsky, no final dos anos 50. Depois de Saussure, os
estudiosos da língua começaram a estudar o signo lingüístico, especialmente
no nível da palavra. Na Europa, houve um grande desenvolvimento dos
estudos da fonologia e da morfologia das línguas eslavas, como o russo, o
polonês, o georgiano, etc. Enquanto isso, nos Estados Unidos, lingüistas e
antropólogos se dedicavam ao estudo das línguas nativas daquele país. Ou
seja, havia um grande interesse pelo estudo das línguas dos índios
americanos. Foram feitas descrições bastante completas da fonologia e
morfologia dessas línguas. Mas tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos,
até o final da 1ª metade do século XX, as pesquisas lingüísticas, de maneira
geral, não iam muito além do nível da palavra. Com raras exceções, os
lingüistas da época não tinham muito interesse pela sintaxe, ou seja, pela
estrutura da sentença.
Em 1957, Noam Chomsky dá início a uma mudança no panorama
lingüístico da época: primeiro, ele propõe um estudo sistemático da sintaxe
das línguas naturais; segundo, ele propõe que a língua seja entendida como
um objeto mental. Diferentemente de Saussure, que entendia a língua como
um objeto fundamentalmente social, Chomsky lança a hipótese de que a língua
humana é um sistema de princípios radicados na mente humana. Para ele,
nossa mente tem um módulo lingüístico responsável pela formação e
interpretação das expressões lingüísticas. A hipótese é a de que esse módulo
lingüístico e os princípios lingüísticos que o formam são inatos. Esses
princípios são parte da dotação genética de espécie humana, e são, portanto,
universais. Uma criança que nasce no Brasil, na Alemanha, no Japão, quer ela
seja ouvinte ou surda, nasce dotada dos mesmos princípios lingüísticos. Esses
princípios são o estágio inicial da aquisição de língua. Para Chomsky, língua é
esse conjunto de princípios universais em seu estado inicial, e seus
desdobramentos ao longo do processo de aquisição de língua, até atingir o que
se chama “estado estável”. Esse estado estável é o conhecimento que um
falante tem de sua língua materna.
Como já dito, Chomsky e seus seguidores não têm nenhum interesse
pelos aspectos sociais da língua, e nesse sentido, eles se afastam de
Saussure. Mas eles também não têm nenhum interesse pela língua em uso.
Nesse sentido, eles se aproximam de Saussure, que dizia que o interesse da
lingüística deveria ser a língua e não a fala. Para Chomsky, o interesse da
lingüística é o conhecimento lingüístico que o ser humano tem de sua língua
materna. Como esse conhecimento é posto em uso não é parte do programa
de pesquisa da teoria chomskyana.
Na unidade 3, nós vamos ver uma série de exemplos desse
conhecimento lingüístico, que é o objeto de estudo da Gramática Gerativa.
Mas, para vocês já irem tendo uma idéia, aqui vai um exemplo do português
brasileiro. Todos nós sabemos que o pronome você, normalmente é
pronunciado cê, em língua corrente falada. Assim, um falante do português,
em geral, pronuncia a sentença Você foi ao cinema com o Pedro e o Rui, como
em (1):
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(1) Cê foi ao cinema com o Pedro e o Rui.
Mas, vejam o que acontece na sentença O Pedro foi ao cinema com
você e o Rui. Não é possível pronunciar cê, em vez de você. O asterisco
mostra que a sentença (2) não é possível em português:
(2) *O Pedro foi ao cinema com cê e o Rui.
Vejam, também, que nós podemos dizer:
(3) Cê e eu gostamos de goiabada.
Mas não podemos dizer:
(4) *Eu e cê gostamos de goiabada.
Todo falante de português sabe quando é possível usar a forma
reduzida cê, e quando é preciso usar a forma você. É esse tipo de
conhecimento lingüístico que é o objeto de estudo da teoria chomskyana. Os
seguidores de Chomsky usam, então, essa noção de língua, bastante restrita,
para o desenvolvimento de sua pesquisa. Nada além do conhecimento
lingüístico de sua língua materna, que está na mente de cada falante nativo, é
parte do programa de pesquisa da Gramática Gerativa.
Nas unidades 4 e 5, fazemos um panorama dos vários níveis de análise
lingüística: desde as menores unidades lingüísticas, que são os fonemas, até
os discursos, textos ou conversações.
A unidade 4 é intitulada “Lingüística Geral: Fonética, Fonologia e
Morfologia”. Inicialmente, distinguimos fonética de fonologia. Apresentamos o
conceito de fonema como uma unidade lingüística que não tem significado,
mas que distingue significados. Para ilustrar esse conceito, damos exemplos
de fonemas (e de seus traços) em línguas orais e na língua de sinais brasileira.
A seguir, passamos à morfologia. Discutimos o conceito de palavra, e
apresentamos o conceito de morfema: a menor unidade lingüística que tem
significado. Morfemas são signos: têm significante e significado. Distinguimos
morfologia derivacional e flexional, e mencionamos a composição. Mostramos
como as línguas de sinais parecem ser diferentes das línguas orais no que diz
respeito à morfologia: elas têm poucos processos derivacionais e flexionais,
embora pareçam ter bastante composição.
A unidade 5 é intitulada “Lingüística Geral: Sintaxe, Semântica e
Pragmática”. Na parte relacionada à sintaxe, vamos ver que todas as línguas
têm um tipo de item lexical que é relacional. Itens lexicais desse tipo são
dependentes, ou seja, para que possamos fazer uma conceitualização da
relação a que eles se referem, outros itens lexicais precisam acompanhá-los.
Verbos, por exemplo, são itens relacionais: eles dependem da presença de
outros constituintes para ter seu sentido completo. Alguns deles precisam de
apenas um outro constituinte para que possamos conceitualizar a
eventualidade que eles designam. Esses são os verbos tipicamente chamados
de intransitivos. Outros precisam de dois ou mais constituintes. Esses são os
verbos chamados de transitivos. É a partir dessas exigências feitas por certos
itens lexicais dependentes que os sintagmas e as sentenças vão se construir.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Além disso, vamos ver que a sintaxe procura dar conta das diversas
possibilidades de ordem dos constituintes na sentença. Cada ordem possível
em uma determinada língua tem uma determinada função: a de privilegiar
certos participantes do evento em detrimento de outros, a de focalizar certos
participantes, contrastando-os com outros, etc.. Tanto o português quanto a
língua de sinais brasileira parecem ser línguas cujas sentenças básicas são do
tipo SVO: sujeito-verbo-objeto. Mas, tanto em uma, quanto em outra,
diferentes ordens de constituintes são atestadas.
Passando para a semântica, falamos de categorização de entidades, de
como umas são mais abstratas que outras, e tratamos das relações de
hiperonímia e hiponímia, como nos pares [ANIMAL]/[CAVALO],
[FERRAMENTA]/[MARTELO], [TALHER]/[GARFO]. Falamos, ainda, que as categorias
têm membros prototípicos, mas também abrangem membros que se afastam
do protótipo, em maior ou menor grau. Assim, por exemplo, pensando na
categoria [fruta], a maçã, a laranja, o abacaxi, entre outros, são membros
prototípicos. E o tomate? Ele é um membro da categoria [FRUTA], mas não é
um membro prototípico. A seguir, tratamos de ambigüidades, apresentando as
noções de homofonia e polissemia. Apesar de distinção entre esses dois
conceitos ser bastante controversa, geralmente os dicionários dão, aos termos
homófonos, entradas lexicais diferentes. Diferentemente, os termos
polissêmicos têm seus vários sentidos listados sob uma única entrada lexical.
No que diz respeito à área da pragmática, apresentamos três temas de
estudo: a dêixis, as implicaturas conversacionais, e os atos de fala. Ao entrar
nessa área, já estamos no nível de estudo da língua em uso. Esses três temas
só podem ser estudados a partir daquilo que Saussure chamou de fala, ou
seja, a língua como ela é usada pelos indivíduos. Sobre dêixis, vamos falar
dos pronomes pessoais, e de como sua referência só pode ser estabelecida a
partir de uma situação de fala. Para ilustrar implicaturas, vamos ver que,
algumas vezes, usamos as expressões lingüísticas para significar algo
totalmente diferente de seu significado literal. Por fim, damos alguns exemplos
de atos de fala explícitos, e mostramos que é possível entender várias
expressões lingüísticas como atos de fala implícitos.
Lembro a todos mais uma vez que este curso é um curso introdutório.
Vocês não devem ter a expectativa de saber lingüística apenas com o que
vamos estudar neste módulo. Os conceitos a que vocês vão ser apresentados
são muito abstratos, e não são fáceis de ser compreendidos. O objetivo aqui é
fazer um grande panorama da área, para que vocês comecem a lidar com
esses conceitos. Ao longo do curso de licenciatura em Letras/Libras, vocês
vão ter módulos específicos que vão tratar de cada uma das áreas da
lingüística, e de algumas áreas de interface, em mais detalhes. Aí vocês vão
aprofundar o conhecimento que se inicia com este curso. Da mesma forma,
nos diversos cursos de Libras 1, 2, 3, etc., vocês vão ver muitos dos conceitos
que vocês vão estudar nas disciplinas de lingüística aplicados à descrição e
análise da língua de sinais brasileira.
Espero que vocês se divirtam e aprendam bastante!
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Unidade 1:
O que é lingüística. Os conceitos de língua e linguagem
Toda vez que uma pessoa me pergunta o que eu faço, eu respondo que
sou professora de lingüística. A pergunta seguinte sempre é:
--“Mas o que é lingüística?”
Não é fácil definir lingüística em uma conversa informal. Às vezes, para
tentar resolver a questão rapidamente, eu simplesmente respondo:
--“Lingüística é a ciência da língua humana”.
Imediatamente, a pergunta seguinte é:
--“Mas, qual língua? Português, inglês, língua de sinais brasileira
(libras), qual?
A lingüística não se limita ao estudo de uma língua específica, nem ao
estudo de uma família de línguas. Ela não é nem o estudo isolado do
português, do japonês, do árabe, da língua de sinais americana (ASL), da
libras, nem é o estudo de um conjunto de línguas aparentadas, como as
línguas indo-européias, as línguas orientais, as línguas semíticas, as línguas
bantas, as línguas de sinais descendentes da língua de sinais francesa (LSF),
etc. A lingüística é o estudo científico da língua como um fenômeno natural. É
claro que quanto mais avançamos nossos conhecimentos sobre as
características das mais variadas línguas naturais, mais bem formamos um
entendimento do que é a língua como um todo.
Como tudo o que se refere ao homem, a língua envolve vários aspectos.
Por isso, a lingüística faz interface com várias outras ciências, como a biologia,
a neuro-fisiologia, a psicologia, a sociologia. Por exemplo, a língua é parte da
biologia humana. Cada vez mais, os estudos lingüísticos têm se interessado
pela parte biológica da língua. Alguns desses estudos investigam, por
exemplo, como a língua surgiu há milhões e milhões de anos atrás. Eles fazem
hipóteses sobre as mudanças que teriam ocorrido na genética dos hominídeos
de modo a fazer surgir a língua. Ainda próximas à biologia, existem teorias que
acreditam que algumas características do conhecimento lingüístico que os
homens têm são parte da dotação genética de espécie humana. Para essas
teorias, essa parte do conhecimento lingüístico que nós temos deve ser
universal. Ela não é uma peculiaridade de uma ou outra língua. Deve ser
encontrada em todas as línguas, sejam elas línguas orais ou línguas de sinais,
sejam elas línguas indo-européias, línguas indígenas, línguas africanas, ou
qualquer outra língua. Nós vamos falar um pouco de uma dessas teorias mais
adiante em nosso curso.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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A língua também está associada à nossa neuro-fisiologia. Por isso, a
lingüística estuda quais partes do cérebro estão envolvidas na produção e na
compreensão da fala, e como ocorrem as afasias, que são as perdas
lingüísticas, em geral causadas por acidentes vasculares cerebrais ou por
traumatismos cranianos. Ela estuda ainda as características físicas e motoras
do aparelho fonador, que é a parte do corpo responsável pela produção dos
sons das línguas orais, e as características físicas e funcionais de nossos
ouvidos, responsáveis pela recepção dos sons das línguas orais. No que diz
respeito às línguas de sinais, já existem alguns estudos lingüísticos que
investigam as possibilidades de articulação das mãos para a produção dos
sinais. Recentemente, também tiveram início alguns estudos que investigam a
percepção de movimentos por surdos sinalizadores.
A língua é sem dúvida parte da cognição humana. Por isso, a lingüística
investiga a relação entre língua e pensamento, e suas conexões com nossa
capacidade motora, com nossa percepção visual e auditiva, e como essas
conexões operam na construção da significação. A disciplina intitulada
Semântica e Pragmática vai tratar de alguns pontos que são relacionados a
essa área da lingüística.
Um outro tipo de estudo que diz respeito às relações entre língua e
cognição é aquele que procura entender a aquisição e o aprendizado de
línguas. As análises feitas nessa área da lingüística têm sido muito debatidas
na área de estudos surdos, porque elas têm mostrado a importância de
crianças surdas terem contacto com as línguas de sinais desde recémnascidas.
Além disso, elas têm mostrado a importância que a fluência em
língua de sinais tem para o aprendizado do português escrito, por surdos.
Vocês vão estudar esses assuntos em mais profundidade nas disciplinas de
Aquisição de Linguagem e Psicolingüística.
A língua é também um fenômeno eminentemente social. As línguas
emergem sempre que dois seres humanos entram em contacto. Um exemplo
recente de nascimento de um língua ocorreu na Nicarágua, na América
Central. Antes de 1970, não havia comunidade surda na Nicarágua. Os
surdos viviam isolados uns dos outros, e se comunicavam com ouvintes por
meio de sinais caseiros e gestos. Não havia uma língua de sinais
nicaragüense. No final dos anos 70, começaram a surgir as primeiras escolas
de surdos do país. Como em vários países do mundo, naquela época, o
ensino nessas escolas enfatizava o aprendizado da língua oral falada no país
(no caso, o espanhol) e a leitura labial. O máximo que os professores usavam
de sinais era a digitalização. A comunicação entre as crianças e os
professores era precária. Entretanto, no recreio, nos corredores, e nos
transportes escolares, aquelas crianças surdas se comunicavam bastante bem.
Inicialmente, elas usavam uma forma rudimentar de comunicação, que envolvia
alguns sinais caseiros e gestos. Mas, aos poucos, essa forma rudimentar foi
se desenvolvendo, construindo uma gramática, até virar uma língua tão
complexa e rica quanto qualquer outra língua. Quando vocês cursarem a
disciplina intitulada Sociolingüística, vocês vão saber mais a respeito dessa
história.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Pelo fato de a língua ser social, a lingüística precisa entender as
relações entre língua e cultura, entre língua e classes sociais, e entre uma
língua e outras línguas que estão em contacto com ela. Essas relações são
importantes porque elas estão associadas a alguns fenômenos de grande
interesse, como a variação e a mudança lingüísticas. Esses fenômenos
também vão ser estudados na disciplina chamada Sociolingüística.
Nesse momento, vocês podem me perguntar:
--“Mas, afinal, o que é língua? Você ainda não respondeu!”
Sim, é verdade, eu ainda não respondi, por dois motivos. Primeiro,
porque cada uma das interfaces da lingüística com outras ciências vai dar uma
definição de língua que privilegia um de seus múltiplos aspectos. Por exemplo,
a interface entre a lingüística e a biologia vai preferir definir a língua como parte
da dotação genética da espécie humana; a interface da lingüística com a
sociologia, vai dar mais ênfase aos aspectos sócio-culturais da língua; a
interface da lingüística com a psicologia vai definir a língua como parte da
cognição humana. O segundo motivo é que, dentro de cada uma dessas
interfaces, desenvolvem-se várias teorias diferentes. E, cada teoria, vai preferir
definir língua de uma maneira especial, que esteja mais de acordo com suas
hipóteses. Portanto, cada definição de língua precisa ser entendida no âmbito
de uma teoria particular. As teorias são como as lentes de um telescópio. As
lentes de um telescópio nos ajudam a ver estrelas e planetas que não
conseguimos ver a olho nu. Da mesma maneira, as teorias são lentes que nos
ajudam a perceber peculiaridades da língua, que passam despercebidas
quando estamos fazendo uso dela em nosso dia-a-dia.
Uma pergunta que talvez vocês estejam querendo fazer é a seguinte:
--“Se a língua é algo que nós percebemos, por meio de nossos ouvidos
ou nossos olhos, por que é que precisamos de teorias para definir o que é
língua?”
Pois é, não é correto pensarmos que a língua é algo que podemos
observar. Aquilo que nós observamos são produções lingüísticas,
manifestações externas da língua, mas não a língua ela mesma. Nós
percebemos sentenças ou discursos em português ou em libras, mas não o
português ou a língua de sinais brasileira em si, não o sistema de princípios,
regras e valores que torna a produção lingüística possível. É por isso que
precisamos das teorias. São elas que nos ajudam a chegar à língua, a partir
das produções lingüísticas que podemos perceber e observar. Pensem, por
exemplo, na seguinte sentença do português:
(5) O pastor alemão é um cão de guarda excelente.
Quantas palavras do português entram na formação dessa sentença?
Inicialmente, poderíamos pensar que há oito palavras nessa sentença. Mas já,
de saída, precisamos resolver uma questão importante, relacionada às
expressões “pastor alemão” e “cão de guarda”. Será que a expressão “pastor
alemão” abrange duas palavras? E será que a expressão “cão de guarda”
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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abrange três palavras? Ou será que cada expressão dessas deve ser
considerada como uma só palavra do português? Como é que nós podemos
decidir por uma ou outra opção?
Vamos imaginar que o cachorro de que estamos tratando seja da minha
vizinha. Qual das duas expressões a seguir é adequada para fazer referência
a esse cachorro, a de número (6) ou a de número (7)?
(6) o pastor alemão da minha vizinha
(7) o pastor da minha vizinha alemão
Vocês devem ter preferido a expressão de número (6), não é? De fato,
do ponto de vista estrutural, a expressão de número (6) é a única expressão
possível, em português, para eu falar do cachorro da minha vizinha. A
expressão “da minha vizinha” não pode aparecer no meio da expressão “pastor
alemão”.
Do mesmo modo, vamos imaginar que estejamos diante de um cão de
guarda que esteja machucado. Qual das duas expressões vamos preferir para
falar dele, a de número (8) ou a de número (9)?
(8) o cão de guarda machucado
(9) o cão machucado de guarda
Novamente, vocês devem ter preferido o número (8), em que o adjetivo
aparece depois da expressão “cão de guarda”, e não no meio dela. Por que é
que todos os que conhecem português preferem a expressão (6) à (7), e a
expressão (8) à (9)? A resposta não é difícil, mas depende de alguns conceitos
que são construídos dentro de uma teoria semântica e morfossintática. A
teoria morfossintática estabelece que as palavras são divididas em classes:
substantivos (ou nomes), adjetivos, verbos, advérbios, preposições. Para
decidir se uma determinada palavra pertence a uma classe, nós aplicamos
vários critérios. Quando vocês cursarem a disciplina de Semântica, vocês vão
aprender que substantivos são expressões lingüísticas que fazem referência a
objetos, indivíduos, entidades. Quando dizemos a expressão pastor alemão,
pensamos em uma raça de cachorro, que é um tipo de entidade. Não
pensamos em um homem nascido na Alemanha, que seja ou pastor de
ovelhas, ou pastor de alguma igreja. Por isso, sabemos que pastor alemão
constitui um único substantivo: ele se refere a uma entidade específica, que é
uma raça de cachorro. O mesmo acontece com a expressão cão de guarda.
Essa expressão faz referência a um tipo de cachorro, que tem a função de
proteger fazendas, casas, fábricas, e que difere de cães de caça, cães de
companhia, cães de trabalho.
Esse critério semântico estabelecido pela teoria não é o único. A teoria
tem também um critério morfossintático para confirmar se as expressões pastor
alemão ou cão de guarda constituem um único substantivo cada um. Esse
critério morfossintático é também conhecido como critério distribucional.
Segundo esse critério, para uma palavra do português ser considerada um
substantivo, ela vem, em geral, precedida de um artigo (como o, a, os, as, um,
uma), de um pronome demonstrativo (como este, esta, esse, essa, aquele,
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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aquela), ou de um pronome indefinido (como algum, alguma, alguns). Ainda,
se a palavra for um substantivo, ela pode vir seguida de um adjetivo, ou de
uma locução adjetiva (como da minha vizinha, machucado). Vejam agora o
que acontece nas expressões (7) e (9). Elas começam com o artigo definido o;
isso sugere que a palavra que vem depois delas é um substantivo (ou nome).
De fato, pastor e cão são substantivos. Até aí, tudo bem. A seguir, aparece a
locução adjetiva da minha vizinha, no caso de (7), e o adjetivo machucado, no
caso de (9). Isso também está de acordo com a teoria da distribuição sintática
das classes de palavras do português. Mas, o problema está no que vem
depois dos adjetivos: alemão e de guarda. Será que esses são adjetivos que
qualificam uma expressão como pastor da minha vizinha, ou como cão
machucado? Certamente que não. Alemão é um adjetivo que se compõe com
pastor, para formar a expressão pastor alemão; e de guarda é uma expressão
que se compõe com cão para formar uma expressão maior, que é cão de
guarda. Nesse sentido, pastor alemão é um único substantivo, e cão de
guarda, também, é um único substantivo.
Vejam, então, que a teoria esclarece as razões pelas quais aqueles que
conhecem português preferem as expressões (6) e (8) às expressões (7) e (9).
Vocês vão estudar esse assunto mais profundamente quando fizerem as
disciplinas de Morfologia, de Sintaxe e de Semântica. Por enquanto, pensem,
seguindo esses critérios propostos pela teoria lingüística, se a língua falada
pelos surdos no Brasil é uma língua de sinais que é brasileira, ou se ela é uma
língua brasileira que é de sinais.
Neste curso de Introdução aos Estudos Lingüísticos, nós vamos estudar
duas grandes linhas teóricas diferentes, muito famosas e produtivas, e vamos
ver como cada uma delas define o que é a língua humana: a primeira delas é a
teoria saussuriana, que nasceu a partir do pensamento de um suíço, chamado
Ferdinand de Saussure, e que teve inúmeros desdobramentos, em especial no
que diz respeito aos estudos do discurso e do texto; e a segunda é a teoria
chomskyana, que surgiu com os primeiros trabalhos de um americano
chamado Noam Chomsky, e que, até hoje, é liderada por ele. Essa segunda
teoria focaliza mais os estudos da gramática. A Sintaxe tem um papel central
dentro dessa teoria, mas ela também abrange a Fonologia, a Morfologia e uma
parte da Semântica.
Vocês poderiam, agora, me fazer a seguinte pergunta:
--“Mas e linguagem? Será que não é mais fácil definir linguagem?”
Não, a definição de linguagem também é complexa. Da mesma maneira
que a língua, a noção de linguagem só pode ser entendida dentro de uma
teoria. Vocês vão ver que, tanto a teoria saussuriana, quanto a teoria
chomskyana, não só definem língua de uma maneira particular, mas também
têm visões completamente diferentes sobre o que é a linguagem.
Mas antes de começarmos a tratar dessas teorias, eu gostaria de
salientar um aspecto da ciência lingüística que é bastante importante. Como
qualquer outra ciência, a lingüística não tem um caráter prescritivo ou
normativo. Ela não impõe as regras de uma língua, nem determina qual deve
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
13
ser a forma “correta” de se dizer uma coisa. Seu objetivo não é proteger a
língua de mudanças, de influências de outras línguas, nem privilegiar as formas
mais “cultas” de uma língua, em detrimento de formas mais “populares”. A
lingüística é uma ciência empírica. O lingüista observa e descreve as línguas
exatamente como elas se apresentam para ele, sem qualquer juízo de valor. O
lingüista também busca explicações para a capacidade que as pessoas têm de
falar ou sinalizar e para a capacidade que elas têm de compreender uma
língua, e para o conhecimento que qualquer falante tem a respeito dos sons ou
gestos, das palavras, das sentenças, dos discursos e dos textos de sua língua.
A lingüística é, então, uma ciência descritivo-explicativa.
As perguntas que talvez vocês estejam querendo fazer neste momento
são as seguintes:
--“Então, todas as pessoas que conhecem uma língua, seja ela
português, inglês, libras, ASL, podem ser consideradas lingüistas? E, quanto
mais línguas uma pessoa souber, melhor lingüista ela será?”
Não. Um lingüista é uma pessoa que estuda métodos de descrição de
línguas e teorias que buscam entender e explicar os fenômenos lingüísticos.
Ele não precisa ser falante da língua que estuda. Ele é preparado para
descrever e analisar qualquer língua, não necessariamente a sua. Por mais
fluente que alguém seja em sua língua materna, por mais domínio que uma
pessoa tenha da gramática de sua língua, isso não faz dela um lingüista.
Vocês já devem ter ouvido falar de William Stokoe, não é? Pois então, Stokoe
era um lingüista escocês que vivia e trabalhava nos Estados Unidos. Em 1955,
ele se tornou professor do Departamento de Inglês do Gallaudet College, hoje
conhecida como Gallaudet University. Nessa época, ele não sabia nada de
ASL. Ele teve que aprender alguns sinais, que ele usava ao mesmo tempo em
que dava suas aulas em inglês, como a maioria dos outros professores. Nessa
época, nem na Gallaudet havia aulas de ASL, pelo simples fato de que
ninguém, nem mesmo os surdos consideravam a sinalização como parte de
uma língua autônoma. Stokoe não demorou a perceber que existia uma
diferença entre a sinalização que ocorria quando um surdo se comunicava com
outro, e a que ele usava como acompanhamento de palavras em inglês,
durante suas aulas. A partir daí, ele começou a observar cuidadosamente a
sinalização usada pelos surdos e demonstrou que aquela sinalização era uma
língua autônoma, que seguia uma gramática própria. Vejam, então, que foi um
falante de inglês, que não sabia ASL, que primeiro descreveu a gramática
dessa língua, e que deu início a uma revolução nos estudos lingüísticos,
mostrando a todo o mundo que as línguas de sinais são línguas naturais.
Certamente, vocês vão ouvir falar muito de Stokoe ao longo de todo o
curso. Mas, antes disso, nas próximas aulas, nós vamos conhecer um pouco
de duas grandes linhas teóricas da lingüística moderna: a teoria de Saussure e
a teoria de Chomsky.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
14
Unidade 2:
A língua para Ferdinand de Saussure
O suíço Ferdinand de Saussure pode ser considerado o pai da
lingüística moderna. Nos anos de 1907, 1908 e 1910, ele deu três cursos na
Universidade de Genebra, na Suíça. Alguns de seus alunos tomaram notas de
suas aulas, e, em 1916, publicaram a famosa obra intitulada Curso de
Lingüística Geral, contendo uma boa parte do pensamento de Saussure, que
tinha morrido em 1913. Portanto, o Curso de Lingüística Geral, de Saussure, é
uma obra póstuma.
Vocês poderiam me perguntar:
--“Então, a lingüística não existia antes de Saussure?”
Não como ela é concebida hoje. Mas, ao longo de toda a nossa história,
há inúmeros registros do interesse dos homens pelas línguas. Na Índia, há
mais ou menos 2500 anos atrás, Panini já tinha elaborado uma gramática
bastante sofisticada do sânscrito, em seus aspectos fonéticos, fonológicos,
morfológicos, sintáticos e semânticos. Na Grécia antiga, muitos filósofos
também se interessavam por vários aspectos da língua humana, entre eles, a
relação entre língua e pensamento, a gramática, a retórica, e a poética. Vários
fenômenos da gramática das línguas modernas são, até hoje, analisados com
base nos ensinamentos de Aristóteles. Na Idade Média, um grande esforço foi
feito por parte dos estudiosos da língua, no sentido de preservar o latim da
influência das línguas dos povos bárbaros, que tinham invadido o Império
Romano, e que tinham se estabelecido em toda a Europa. Isso significa que,
nessa época, os estudos lingüísticos tinham uma orientação prescritivista.
Vocês se lembram que, em outra aula, eu tinha dito que, como ciência, a
lingüística não pode impor regras, nem deve tentar proteger as línguas das
mudanças. Vejam como não adianta. Por mais que os estudiosos medievais
tenham tentado preservar o latim, aos poucos ele foi desaparecendo, e outras
línguas foram surgindo a partir dele, como o português, o espanhol, o italiano, o
francês, o romeno.
Na Idade Moderna, com os descobrimentos da África e das Américas, e
com o domínio da Europa sobre boa parte da Ásia, um novo interesse
lingüístico surgiu. Os europeus estavam diante de línguas muito diferentes
daquelas com as quais eles estavam acostumados. Os estudiosos das línguas
não podiam mais ficar limitados aos estudos sobre o grego e o latim, e
começaram a observar, ainda que perplexos, os fenômenos fonéticos e
gramaticais de línguas como o chinês, como certas línguas indígenas da
América, e certas línguas africanas. Aí tem início uma linha de estudos
lingüísticos que atingiu seu apogeu no século XIX: os estudos históricocomparativos.
Em 1816, um estudioso da história das línguas chamado Franz
Bopp publica um estudo comparativo da conjugação verbal do sânscrito, do
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
15
grego, do latim, do persa e do germânico, que evidencia a enorme semelhança
entre essas línguas. Surge, nesse momento a idéia de parentesco entre as
línguas. A hipótese é a de que todas essas línguas têm uma origem comum.
Por isso, elas constituem uma família de línguas, que passaram a se chamar
línguas indo-européias. Fica claro que essa família de línguas se diferencia de
outras línguas com as quais os europeus vinham tendo contacto. Por sua vez,
essas outras línguas também começam a ser agrupadas em grandes famílias.
É no contexto desses estudos histórico-comparativos que Saussure
lança suas idéias sobre a língua e sobre a linguagem. A partir desse momento,
os estudos lingüísticos começam a adquirir um caráter mais profundo e
abstrato. Eles deixam de se concentrar na comparação de manifestações
externas de várias línguas, e passam a se interessar pela língua como um
sistema de valores estruturado e autônomo, que é subjacente a toda e
qualquer produção lingüística, seja ela feita em português, em inglês, em
francês, em ASL, em LIBRAS, ou em qualquer outra língua. Aí a lingüística
passa a ser concebida como uma ciência: ela não só descreve fatos
lingüísticos, mas busca uma explicação coerente para sua ocorrência.
Vamos ver, então, alguns dos pontos importantes do pensamento de
Saussure.
2.1 Língua e Linguagem
Para Saussure, linguagem é uma faculdade humana, uma capacidade
que os homens têm para produzir, desenvolver, compreender a língua e outras
manifestações simbólicas semelhantes à língua. A linguagem é heterogênea e
multifacetada: ela tem aspectos físicos, fisiológicos e psíquicos, e pertence
tanto ao domínio individual quanto ao domínio social. Para Saussure, é
impossível descobrir a unidade da linguagem. Por isso, ela não pode ser
estudada como uma categoria única de fatos humanos. A língua é diferente.
Ela é uma parte bem definida e essencial da faculdade da linguagem. Ela é um
produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções
necessárias estabelecidas e adotadas por um grupo social para o exercício da
faculdade da linguagem. A língua é uma unidade por si só. Para Saussure, ela
é a norma para todas as demais manifestações da linguagem. Ela é um
princípio de classificação, com base no qual é possível estabelecer uma certa
ordem na faculdade da linguagem.
Vocês devem estar pensando que isso tudo é muito complicado. De
fato, não estamos lidando com conceitos fáceis. Mas vamos retomar essas
idéias de Saussure de uma maneira mais informal. O que Saussure pensa é
que os homens têm uma capacidade para produzir sistemas simbólicos, ou
seja, sistemas de conceitos associados a uma determinada forma, como a
língua, as artes plásticas, o cinema, o teatro, a dança. Essa capacidade é a
linguagem. Para Saussure, a capacidade da linguagem não pode ser o objeto
de estudo de uma única ciência como a lingüística, na medida em que ela tem
características de naturezas diversas: física, fisiológica, antropológica, etc. O
objeto da lingüística deve ser a língua, que é um produto social da faculdade da
linguagem, e que é uma unidade.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
16
Uma pergunta que talvez vocês estejam querendo fazer neste momento
é:
--“O que significa dizer que a língua é um produto social da faculdade da
linguagem? Por que social?”
A língua é um fenômeno que está além do domínio individual de cada
um de nós. Ela não é minha, nem de cada um de vocês, nem de nenhuma
outra pessoa considerada individualmente. Ela é produto de uma comunidade,
ela é parte do domínio dessa comunidade. O português brasileiro é a língua de
uma grande comunidade de pessoas ouvintes, nascidas no Brasil. A LIBRAS é
a língua de uma grande comunidade de pessoas surdas nascidas no Brasil.
Essas línguas não se limitam a uma ou outra pessoa. Elas nascem e se
desenvolvem no âmbito de um grupo social, não no âmbito individual.
Uma conseqüência do fato de a língua ser social é ela ser também
convencional: ela existe e se mantém por um acordo coletivo tácito entre os
falantes. Isso significa que um falante de uma língua não pode fazer
modificações nessa língua a seu bel prazer. Imaginem, por exemplo, um
falante do português que não goste de chamar os dias da semana de segundafeira,
terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado e domingo. Ele
resolve, então, sozinho, chamar esses dias de, por exemplo, lual, martal,
mercural, toral, livral, saturnal e solal. Daí ele liga para o médico para marcar
uma consulta, e diz que prefere ser atendido no próximo mercural, porque em
todos os martais e torais ele trabalha o dia inteiro. Vocês acham que a
recepcionista do consultório vai entender? Certamente que não. A
comunicação humana seria impossível se a língua não fosse convencional.
Mas vamos voltar à diferença entre língua e linguagem. Saussure
entende que, de todas as manifestações da faculdade da linguagem, a língua é
a que mais bem se presta a uma definição autônoma. Por isso, ela ocupa um
lugar de destaque entre as manifestações da linguagem, e, como tal, deve ser
tomada como base para o entendimento de todas essas outras manifestações.
Por isso, hoje em dia, a Semiótica, que é a ciência que estuda todas as
manifestações da faculdade da linguagem, parte sempre de análises feitas
sobre a língua. Baseados nessas análises lingüísticas, os semioticistas
estudam outras manifestações da faculdade da linguagem, como o cinema, a
pintura, a escultura, a música, as tatuagens e uma variedade de manifestações
da linguagem.
Vocês devem estar ansiosos, querendo me dizer o seguinte:
--“Bem, você falou um tempão sobre a diferença entre linguagem e
língua, mas, até agora, não explicou exatamente o que é língua para
Saussure!”
Sim, vocês têm um pouco de razão. É preciso ter calma, que ainda falta
muito o quê explicar. Mas nós já vimos várias características da língua.
Primeiro, vimos que língua e linguagem são bastante diferentes: a linguagem é
uma capacidade humana, da qual a língua é um produto. Também vimos que
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
17
a língua é um fenômeno social e convencional. Vamos explicitar isso melhor,
distinguindo língua de fala.
2.2 Língua e Fala
Os estudos lingüísticos modernos que analisam a obra de Saussure
usam o termo “dicotomia” para denominar quatro pares de conceitos centrais
na teoria saussuriana. Se vocês olharem em um dicionário, como o Aurélio,
por exemplo, vocês vão ver que existe um sentido para o termo “dicotomia”,
usado na lógica, que é o de “divisão lógica de um conceito em dois outros
conceitos, em geral contrários, que lhe esgotam a extensão”. É exatamente
essa a idéia que devemos fazer quando falamos das dicotomias saussurianas.
Os conceitos dicotômicos se opõem, um só pode ser entendido em relação ao
outro, e, juntos, formam um conceito maior, que é central para o entendimento
do que é a língua humana.
As quatro famosas dicotomias saussurianas são: língua e fala,
significante e significado, sincronia e diacronia, e paradigma e sintagma. Neste
momento, nosso objetivo é esclarecer o que são língua e fala.
Nós vimos, há pouco, que a língua é coletiva e social. A fala, por outro
lado, é a manifestação ou concretização da língua, por um indivíduo. Na
língua, está o que é essencial; na fala está o que é acessório e mais ou menos
acidental. A língua não é uma função do falante. A fala, diferentemente, é um
ato individual de vontade: ao falar, o falante precisa fazer opções por uma ou
outra maneira de dizer a mesma coisa, fazer escolhas sobre o vocabulário que
vai usar, entre outras coisas. Cada pessoa nascida no Brasil que tem o
português como língua materna pode narrar o mesmo acontecimento de
maneiras muito diferentes. Cada pessoa vai produzir uma fala diferente. Mas
a língua vai ser sempre a mesma: português. E é justamente o fato de que a
língua é a mesma que faz com que as pessoas consigam se comunicar.
Para ilustrar a diferença entre língua e fala, Saussure se vale do fato de
que existem inúmeras línguas mortas. O latim, por exemplo, é uma língua
morta. Ninguém mais usa o latim. Não há mais “falas” do latim. Mas a língua
continua a existir.
Neste momento de todo curso de Introdução aos Estudos Lingüísticos, é
muito comum os alunos fazerem a seguinte pergunta:
--“Então a fala é o som produzido pelas línguas orais, ou os gestos
produzidos pelas línguas de sinais?”
Não. A fala é a língua posta em uso, mas ela não se limita ao meio--
sonoro, gestual, escrito--que usamos para colocar nossa língua em uso. Ela é
a prática da língua, e apresenta várias propriedades, que vão muito além do
som, do gesto, ou da grafia. Para Saussure, a fala não devia ser estudada pela
lingüística, justamente porque ele pensava que ela era secundária e
assistemática. Hoje em dia, a visão que se tem da fala é muito diferente. Seu
estudo é extremamente interessante e é considerado de grande importância na
lingüística moderna. Quando vocês cursarem as disciplinas chamadas
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
18
Pragmática e Análise do Discurso, vocês vão conhecer algumas peculiaridades
da fala.
Para Saussure, o objeto da lingüística é a língua. Mas ele não deixa de
considerar a possibilidade de fatos da fala interferirem na língua, a ponto de
causar algumas mudanças no sistema. Um exemplo clássico do português é o
do aparecimento, nessa língua, dos fonemas /´/ e /ø/, que correspondem às
grafias -lh e -nh, respectivamente. Esses fonemas não existiam em latim. Sua
origem é fruto da palatalização das consoantes /l/ e /n/ diante de /i/, que deu
como resultado a pronúncia [fi´u] para o latim filiu, e a pronúncia [viøa] para o
latim vinia. Enquanto essas mudanças se mantinham no nível fonético, ou
seja, da pronúncia, elas estavam no domínio da fala. Entretanto, com o passar
dos anos, no português elas chegaram a alterar o sistema, passando a adquirir
um caráter distintivo. Isso significa que, hoje em dia, /´/ e /l/ podem diferenciar
significados, como em galo versus galho. O mesmo acontece com /ø/ e /n/,
como em pena e penha. Essa distinção, agora, é parte da língua.
--“Mas, afinal, o que é língua? Vocês me perguntam.
Bem, chegou finalmente o momento de apresentar a idéia de Saussure
sobre o que é a língua humana. É importante lembrar algo que já vimos em
aulas passadas: cada teoria lingüística define língua de uma maneira diferente.
Apesar de sua grande importância, a noção de língua de Saussure é uma entre
várias noções de língua com as quais a lingüística moderna opera.
Para Saussure, a língua é um sistema. Um sistema é um conjunto
organizado de elementos, que se define pelas características desses
elementos, e no qual cada elemento se define pelas diferenças que apresenta
em relação a outro elemento, e por sua relação com todo o conjunto.
--“Isso parece complicado!”, vocês devem estar querendo me dizer.
Não, não é. Vamos pensar em uma escola, por exemplo. O que é uma
escola? É um conjunto de elementos, que são os estudantes. E o que são os
estudantes? São os elementos de uma escola. Aí temos parte de nossa
definição de sistema: o conjunto (escola) definido por sua relação com as
partes (estudantes), e as partes (estudantes) definidas por sua relação com o
todo (escola). Mas podemos ir além. Cada grupo de estudante pode ser
definido por oposição a um outro grupo de estudante: os da 1a. série são
definidos por oposição aos da 2a. série; os do período da manhã são definidos
por oposição aos do período da tarde; e assim por diante.
Uma outra metáfora usada pelo próprio Saussure para esclarecer essa
questão é a de uma rede de pescar. A rede é formada de nós, e cada nó se
relaciona com todos os outros nós que formam a rede. A rede, que é o
conjunto, é definida como um sistema de nós; os nós, que são as partes, são
definidos por sua relação com o todo, porque formam a rede, e por sua relação
com todos os outros nós. Assim é a língua, para Saussure. Na língua, só
existem diferenças.
Vocês devem estar querendo perguntar:
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
19
--“O que significa dizer que na língua só existem diferenças?”
Significa o que nós acabamos de ver: que cada elemento da língua se
define pela diferença que apresenta quando comparado a outro elemento.
Vamos dar um exemplo do português para esclarecer essa noção. Pensem na
palavra /pata/. Como é que eu posso definir o fonema /p/ que aparece no início
da palavra? Eu posso dizer que ele não é /b/. Vejam que, se eu substituir /p/
por /b/ eu obtenho outra palavra: /bata/. Eu também posso dizer que /p/ não é
/m/. De novo, se eu substituir /p/, em /pata/, por /m/, eu obtenho ainda uma
outra palavra do português: /mata/. Eu posso ir além, e dizer que /p/ não é /l/.
Se eu substituir /p/ por /l/ eu obtenho /lata.
Tomemos ainda outro exemplo. Vamos pensar em um verbo como
cantar. Esse verbo é composto de dois morfemas, cant- e -ar. Como é que eu
posso definir o morfema cant-? Por sua oposição com bord-, que forma o
verbo bordar. Ou por sua oposição com danç-, que forma o verbo dançar. E
como é que eu posso definir o morfema -ar, do verbo cantar? Por sua
oposição com o morfema -er, que forma o verbo beber. Ou ainda por sua
oposição com o verbo -ir, que forma o verbo partir.
Para Saussure, o conjunto de diferenças que existe na língua está
relacionado com a noção de valor. Em todos os exemplos acima, cada
elemento analisado tem seu valor lingüístico estabelecido por sua relação com
os demais elementos da língua que sejam da mesma natureza. Assim, /p/ tem
seu valor lingüístico estabelecido por sua diferença em relação a /b/, a /m/, a /l/.
O morfema cant- tem seu valor lingüístico estabelecido pela oposição que faz a
danç-, a bord-. E o morfema -ar tem seu valor estabelecido por sua diferença
em relação a -er e -ir.
Vamos ver alguns exemplos da LIBRAS. Pensem em um par de sinais
como SÁBADO e APRENDER. Do ponto de vista da fonologia das línguas de
sinais, eu posso definir SÁBADO por oposição a APRENDER, pelo ponto de
articulação dos dois sinais: SÁBADO é realizado diante da boca do sinalizador,
e APRENDER é sinalizado diante da testa do sinalizador. Pensem agora em
sinais como SEMANA, DUAS-SEMANAS, TRÊS-SEMANAS, QUATROSEMANAS.
Como é que podemos definir esses sinais? Do ponto de vista
morfológico, esses sinais são compostos de dois morfemas: o número, que é
representado pela configuração de mão, e o sinal SEMANA, que é
representado pelo movimento retilíneo diagonal, realizado no espaço de
sinalização, na altura do tronco do sinalizador. Na realização desses sinais, o
morfema correspondente a SEMANA se mantém igual, mas as configurações
de mão vão mudando, para expressar os morfemas que significam os
diferentes números. Cada um desses morfemas se define pela oposição que
faz em relação aos outros morfemas da mesma natureza.
Em resumo, para Saussure, a língua é:
a) um sistema estruturado de elementos, que se define por sua
relação com esses elementos; esses elementos, por sua vez, se
definem por sua relação com o sistema e por sua relação com os
demais elementos que compõem o sistema. Por isso, para
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Saussure, na língua só há diferenças. A diferença que se
estabelece entre cada elemento do sistema revela seu valor
lingüístico;
b) um produto essencial da faculdade da linguagem, com base no
qual todas as outras manifestações da linguagem devem ser
analisadas;
c) social, exterior ao indivíduo. Ela existe por uma espécie de
contrato entre os membros de uma comunidade. Por isso, ela
não pode ser nem criada, nem modificada por um indivíduo.
Nesse sentido, a língua difere da fala, que é individual.
Eu sei que vocês devem estar preocupados, achando que lingüística é
uma disciplina muito difícil. De fato, nós estamos lidando com conceitos
bastante complexos. Mas vocês não precisam se preocupar. Este é o primeiro
módulo de todo o curso. À medida que o curso for avançando, essas noções
vão ficando mais e mais claras.
Passemos agora ao estudo de uma outra dicotomia saussuriana, de
grande relevância: a que trata da constituição do signo lingüístico.
SIGNIFICANTE E SIGNIFICADO
A noção de valor introduzida por Saussure para tratar das diferenças de
que se constitui o sistema lingüístico é de extrema importância na consideração
dos dois elementos fundamentais do sistema lingüístico: as idéias e os sons
ou gestos. Esses dois elementos entram na constituição do signo lingüístico.
--“E o que é um signo lingüístico?”, vocês me perguntam.
Signos são unidades lingüísticas que significam alguma coisa. Por
exemplo, mesa é um signo do português. Quando eu uso esse signo, todos os
falantes de português sabem a o quê eu quero me referir. Uma palavra como
arvoredo, por exemplo, também é um signo do português. Mas ela é composta
de dois outros signos menores que também têm signficação: arvor- (árvore) e -
edo, que significa conjunto de alguma coisa. Sentenças também são signos.
Se eu digo O João comprou batatas, essa sentença também é um signo do
português, porque ela significa alguma coisa. Textos também são grandes
signos, na medida em que também têm uma significação própria. Assim, por
exemplo, o romance de Machado de Assis, intitulado Quincas Borba, é um
signo; do mesmo modo, o poema épico de Camões, intitulado Os Lusíadas, é
um signo.
No nosso dia-a-dia, nós temos muitas vezes a impressão de que os
signos são uma mera nomenclatura das coisas que existem no mundo. Muitos
de nós têm a idéia de que o nosso mundo está repleto de coisas, e que a
língua é criada para nomeá-las. Nessa idéia, então, as coisas já existiriam
antes da língua.
Saussure se opõe frontalmente a essa visão. Para ele, nossas idéias a
respeito de o quê as coisas são dependem da língua. A seu ver, não existem
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
21
idéias estabelecidas anteriormente à língua. Antes da língua, nosso
pensamento é uma massa amorfa e indistinta, como uma nebulosa.
Do mesmo modo, antes da língua, a substância fônica ou gestual que
participa da constituição dos signos também é uma massa amorfa, constituída,
de maneira desordenada, de todos os sons ou gestos que o ser humano é
capaz de produzir.
A língua é uma relação que associa a massa amorfa do pensamento à
massa amorfa fônica/gestual, ao mesmo tempo formatando-as, delimitando-as
de uma maneira particular. Ao impor uma formatação à massa amorfa do
pensamento, a língua cria o significado, que é um conceito. Ao impor uma
formatação à massa amorfa fônica/gestual, a língua cria o significante, que é
uma imagem acústica (no caso das línguas orais) ou ótica (no caso das línguas
de sinais). Juntos, significante e significado formam o signo lingüístico.
É importante entender que a formatação das massas amorfas do
pensamento e dos sons acontece ao mesmo tempo. Para ilustrar esse fato,
Saussure usa a metáfora da folha de papel: o pensamento é a frente da folha,
e o som/gesto é o verso. Você não pode cortar um, sem cortar
necessariamente o outro. Portanto, não se trata de termos uma idéia já préconcebida
e procurarmos um som/gesto para representá-la. Nem se trata de
termos uma cadeia sonora ou gestual à nossa disposição e usarmos essa
cadeia para uma idéia. A língua cria significante e significado ao mesmo
tempo.
Ao ver de Saussure, ao criar os signos, a língua impõe uma
organização, tanto na massa amorfa do pensamento, quanto na massa amorfa
fônica/gestual. Cada signo adquire um valor, que vai demarcar seus limites, e
contrapô-lo a outros signos.
Vocês poderiam perguntar:
--“Essa noção de valor é a mesma já discutida a respeito da idéia da
língua como um sistema?”
Sim, exatamente. Como já foi visto, a noção de valor é muito importante
na teoria saussuriana. Um signo se define pelas diferenças que ele tem
quando comparado a outros signos. Cada signo tem um valor, e é esse valor
que permite contrastá-lo com outros signos, e defini-lo. Vamos esclarecer essa
idéia discutindo uma diferença entre o português e o inglês, apoiando-nos em
um esquema sugerido pelo próprio Saussure (1969:131):
massa amorfa do pensamento
massa amorfa fônica
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
22
Na primeira linha do esquema, temos a massa amorfa do pensamento,
e, na segunda, temos a massa amorfa fônica. O português faz um recorte nas
duas massas amorfas e cria o signo porco, cujo significado é nosso conceito do
animal [PORCO] e da carne que muitos de nós gostamos de comer, e cujo
significante é /porku/, ou seja, a seqüência de fonemas do português que é
usada para produzirmos o signo porco. No sistema do português, esse signo
se opõe a outros signos, como vaca, carneiro, galinha, etc.
Vejamos, agora, o que acontece no inglês:
massa amorfa do pensamento
massa amorfa fônica
Na mesma massa amorfa de pensamento, e na mesma massa amorfa
fônica, o inglês faz dois recortes: um deles cria o signo pig, que é o animal que
nós chamamos de porco; o outro cria o signo pork, que é a carne do animal
porco, que muitos de nós gostamos de comer. Cada um desses signos tem
seu próprio valor no sistema do inglês, e se definem pela oposição que
podemos fazer entre eles. Assim, enquanto em português o signo “porco” se
opõe a outros animais e suas carnes, em inglês, o signo pig se opõe a outros
animais, mas também ao signo pork, que é a carne do porco.
É por isso que, para Saussure, a língua é um princípio de classificação:
a língua é uma forma de interpretar, organizar e categorizar o mundo. De uma
mesma realidade, o português cria uma única categoria porco, que engloba
tanto o animal quanto sua carne, enquanto o inglês cria duas categorias: uma
para o animal, outra para a carne. Essa diferença entre os recortes feitos pelo
inglês e pelo português podem também ser vistas em outras categorizações. O
português tem um signo carneiro, que engloba tanto o animal quanto sua
carne; o inglês tem, novamente, dois signos diferentes: sheep para o animal,
e mutton para sua carne. O português tem um signo vaca, que abrange o
conceito do animal e de sua carne, enquanto o inglês o inglês tem dois signos,
cow e beef, para o animal e para a carne, respectivamente.
Mas, vocês poderiam perguntar:
--“Então, será que o inglês e o português sempre criam signos diferentes
para tudo, e categorizam o mundo de maneira sempre tão diferente?”
Não. Por exemplo, inglês e português parecem ter as mesmas
categorias de cores básicas, correspondentes aos signos preto, branco,
vermelho, amarelo, azul, verde, marrom, roxo, rosa, laranja e cinza. Outros
povos fazem recortes diferentes no espectro das cores. Alguns, por exemplo,
têm um único signo para expressar o que nós chamaríamos ou de azul, ou de
verde. Outros povos, ainda, têm apenas dois signos para todas as cores: um
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
23
deles compreende o que para nós seria o preto, o azul, o verde e o cinza; o
outro compreende o que para nós seria o branco, o amarelo, o laranja e o
vermelho.
Os povos diferem muito, também, no que diz respeito ao recorte que
fazem nas relações de parentesco. Em português, por exemplo, nós temos
dois signos irmão e irmã para designar filhos do nosso pai e/ou da nossa mãe,
sejam eles mais novos ou mais velhos que nós. Em húngaro, há quatro signos
distintos: bátya para irmão mais velho, e öccs para irmão mais novo; nenê
para irmã mais velha, e húg para irmã mais nova.
Para Saussure, então, cada língua “cria” um mundo, diferente do mundo
físico real. É com esse mundo criado pela língua que nós operamos.
Vocês poderiam, agora, fazer o seguinte comentário:
--“Bem, essas idéias são bastante difíceis de entender. Entretanto,
quando falamos dos recortes feitos na massa amorfa do pensamento, que
criam conceitos que diferem de língua para língua, tudo bem. Mas o que
acontece na massa amorfa fônica ou gestual? Como é que as línguas fazem
recortes nessa massa fônica ou gestual?”
Vejam que, de todos os sons ou gestos que os seres humanos são
capazes de produzir, cada língua escolhe um subconjunto deles, como aqueles
sons ou gestos que têm valor dentro do sistema. Comparando, novamente, o
inglês e o português, o inglês usa muitos sons que nós não usamos em
português. Entre eles, estão os sons [T], [D], que, na escrita, são
representados com a seqüência th-. Esses sons são produzidos com a língua
entre os dentes, em palavras como thing (coisa) e the (o, a). O primeiro deles
se produz sem a vibração das cordas vocais, e o segundo se produz com a
vibração das cordas vocais. Esses sons, em inglês, têm valor: eles distinguem
significado. Assim, por exemplo, a palavra thin (magro/a), produzida com a
língua entre os dentes, é diferente da palavra tin (lata), produzida com a ponta
da língua tocando os alvéolos. Também é diferente da palavra sin, que apesar
de ser sibiliante como thin, não tem a língua entre os dentes. No modelo de
Saussure, podemos dizer que na formatação que o inglês faz da massa amorfa
fônica, um valor foi atribuído aos sons [T] e [D], de modo que eles fazem parte
do sistema lingüístico do inglês. Português faz um recorte diferente. No
sistema do português, esses sons não têm valor. Fenômenos semelhantes
devem acontecer nas línguas de sinais. De todas as configurações de mão
possíveis, de todos os pontos de articulação possíveis, cada língua de sinais
deve escolher um subconjunto de configurações e pontos, e dar valor aos
membros desse subconjunto, deixando várias configurações e pontos de
articulação de fora. Vocês vão estudar esse assunto mais profundamente
quando estiverem cursando a disciplina Fonética/Fonologia.
Uma observação que é muito importante é a de que, para Saussure, ao
fazer as delimitações nas massas amorfas do pensamento e do sons/gestos, a
língua produz uma forma. Ou seja, de uma substância amorfa de pensamento
e de uma substância amorfa fônica/gestual, a língua cria uma forma.
Significante e significado são formas, não substâncias. A lingüística tem por
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
24
objeto o estudo da forma do significante e da forma do significado, não da
substância. Para Saussure, o estudo da substância do significado é objeto de
estudo da psicologia, e o estuda da substância do significante é a fonética
acústica e articulatória.
Neste momento, vocês poderiam fazer a seguinte objeção:
--“Mas você disse que existe uma área da lingüística que faz interface
com a psicologia, e se interessa por questões relativas à cognição! O mesmo
acontece com a fonética. Nós até vamos ter uma disciplina que se chama
Fonética/Fonologia!
Sim, vocês têm razão de estranhar o que eu acabei de dizer a respeito
da visão de Saussure sobre o objeto da lingüística. Mas não se esqueçam de
que Saussure estava tentando lançar as bases de uma ciência. Por isso, ele
precisava ser radical no estabelecimento dos limites do objeto dessa ciência.
Hoje em dia, muitos lingüistas que fazem pesquisa sobre semântica não
deixam de se interessar sobre questões centrais da psicologia, exatamente
porque as línguas têm uma relação direta com essas questões: afinal, a língua
é uma formatação da massa amorfa do pensamento, que é um dos objetos de
estudo da psicologia. O mesmo acontece com lingüistas que estudam
fonologia. Eles não podem deixar de estudar fonética, porque é essa disciplina
que analisa a massa fônica/gestual que é formatada pelas línguas!
Bem, vamos passar para as duas últimas dicotomias saussurianas, que
são mais light: sintagma e paradigma, e sincronia e diacronia.
2.3 Sintagma e Paradigma
Essa é uma dicotomia razoavelmente fácil de ser entendida. Como já
vimos, na língua, todos os elementos se definem pelas relações que
estabelecem com outros elementos e com o próprio sistema lingüístico. Essas
relações e as diferenças que se estabelecem entre os elementos que
constituem o sistema podem ser separadas em dois grupos. Cada um desses
grupos corresponde a uma forma de atividade mental, e ambos são
fundamentais para a língua.
Antes de entrar propriamente no estudo desses grupos de relações,
precisamos discutir uma característica que Saussure atribui às línguas naturais,
que é de particular interesse para quem se dedica ao estudo das línguas de
sinais. Trata-se da linearidade do significante. Para Saussure, que limitou
suas observações às línguas orais, o significante das línguas, por ser de
natureza acústica, só poderia se desenvolver em uma seqüência linear. Ou
seja, seus elementos se apresentariam um após o outro, em uma linha no
tempo. Em outras palavras, para Saussure, na língua não existe
simultaneidade. Ele chega a dizer que, no caso do acento que se sobrepõe a
uma sílaba, diferenciando as sílabas tônicas das sílabas átonas dentro de uma
mesma palavra, não há simultaneidade de elementos significativos diferentes.
Hoje em dia, alguns lingüistas ainda se prendem bastante a essa noção
de Saussure. Para esses lingüistas, essa é uma grande diferença que existe
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
25
entre a língua e outras manifestações da faculdade da linguagem, como a
pintura, em que os significantes não se apresentam de forma linear, mas se
sobrepõem uns aos outros. Entretanto, um grande número de lingüistas tem
questionado essa visão. Primeiro, porque ela não se aplica tão
categoricamente às línguas de sinais; segundo, porque ela deixa de lado
muitos fenômenos das línguas orais, que ocorrem simultaneamente à cadeia
linear de significantes. Em algumas línguas orais, como o português, por
exemplo, o acento da palavra pode distinguir significado. É o que acontece
com os signos sábia, sabia, sabiá. Vejam, o acento é algo que ocorre
simultaneamente à pronúncia de sons vocálicos dessas palavras. A entonação
também é distintiva de significado, e, sem dúvida, ela ocorre simultaneamente
a uma seqüência de significantes. Por exemplo, é com um tipo particular de
entonação sobreposta à sentença Você foi ao cinema ontem, que nós
distinguimos essa afirmação, da interrogação Você foi ao cinema ontem?.
Nas línguas de sinais, a simultaneidade é um fato bastante comum: é
possível se realizar um signo com uma mão, e outro com a outra, ao mesmo
tempo. Além disso, enquanto as mãos estão realizando sinais lexicais, a
posição do tronco e da cabeça, a direção do olhar, as expressões faciais estão
fornecendo informações discursivas e gramaticais.
Mesmo assim, é inegável que, mesmo nas línguas de sinais, há
linearidade em todos os níveis de análise: do fonológico ao discursivo. Na
morfologia das LIBRAS, por exemplo, um sinal como MELÃO, que é um sinal
composto, é feito da seguinte maneira: a primeira parte do sinal é feita com as
mãos abertas na vertical, palma a palma, dedos separados e curvados,
tocando-se pelas pontas, com as bochechas infladas. A segunda parte do sinal
é feita com a mão dominante, palma para o lado oposto, os dedos dobrados, as
pontas dos dedos tocando a ponta do polegar, o dedo indicador estendido; a
lateral do indicador toca a testa e desce até o nariz. O sinal precisa ser
realizado nessa ordem linear. Não é possível invertê-la. Certamente, quando
vocês estudarem a fonologia, a morfologia e a sintaxe da LIBRAS, vocês vão
ver que, apesar das propriedades de simultaneidade que ela exibe, existe
muita linearidade em todas as línguas de sinais.
Podemos, agora, voltar à questão da dicotomia sintagma versus
paradigma. Nós podemos pensar em sintagma e paradigma como dois eixos:
o primeiro corresponde a um eixo horizontal, o segundo a um eixo vertical. O
eixo sintagmático, ou horizontal, é o eixo da linearidade. O exame dos
elementos lingüísticos nesse eixo envolve o contraste que um elemento
estabelece com outro elemento que está adjacente a ele na cadeia de
elementos que ocupa a linha horizontal. Assim, por exemplo, em português,
uma palavra como inconstitucional é formada de três signos, ou morfemas: in-,
constitucion-, e -al. Cada um desses signos adquire um valor porque se opõe
ao signo que o precede, ou que o sucede, ou aos dois. O mesmo acontece
com certas expressões como forçar a barra (que significa insistir), ou não dar
bola (que significa não dar importância), entre outras. Cada termo dessas
expressões complexas ganha valor pela oposição que faz aos termos
precedentes ou seguintes e a toda a expressão. O mesmo acontece no nível
fonológico. Por exemplo, em uma palavra do português como bota, o fonema
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
26
/b/ tem seu valor estabelecido pela relação que estabelece com o fonema /o/,
que, por sua vez, tem seu valor estabelecido pelas relações que estabelece
tanto com o fonema /b/, quanto com o fonema /t/, e assim por diante.
No nível sintagmático, existe uma determinada ordem de sucessão dos
elementos. Por exemplo, os signos que formam a palavra inconstitucional não
podem aparecer em outra ordem, que não essa. Da mesma maneira, em uma
expressão como forçar a barra, não é possível alterar a ordem dos
constituintes: não podemos dizer algo como barra forçar a, ou a forçar barra,
ou forçar barra a. Aliás, isso acontece não só com expressões idiomáticas
como essa. Por exemplo, em português, um artigo sempre vem antes do
substantivo, como em o menino, um cachorro. Na fonologia, também há
algumas ordens limitadas. Por exemplo, depois do fonema /b/, podemos ter
uma vogal (como em bata, bebe, bicho, boca, burro), e podemos ter as
consoantes /r/ e /l/ (como em brasa, blusa), mas não podemos ter outras
consoantes como /p/,/t/, /s/, etc.
O eixo paradigmático ou eixo vertical é o eixo das relações associativas.
Segundo Saussure, os signos que têm algo em comum se associam em nossa
memória, formando grupos. Dentro desses grupos, as relações que se
estabelecem podem ser de vários tipos. Tomemos uma palavra do português
como demonstração. Essa palavra se associa a muitas outras no que diz
respeito à semelhança de significados, formando, assim um paradigma com
outras palavras como exibição, amostragem, exposição, etc. Ela também se
associa a outras palavras pela semelhança do radical, formando um paradigma
com palavras como demonstrar, demonstração, demonstrável, etc. Ela pode
ainda se associar a outras palavras pela semelhança do sufixo, formando um
outro paradigma com palavras como constituição, educação, construção, etc.
Por fim, ela pode formar um paradigma com palavras como monstro, ração,
tração, etc., pela semelhança dos significantes.
Quando tratamos de sintagma e paradigma, precisamos discutir uma
outra noção que é bastante enfatizada na teoria saussuriana -- a da
arbitrariedade do signo lingüístico -- que também é de grande interesse para os
estudiosos das línguas de sinais. Quando Saussure trata do signo lingüístico,
e da relação entre significante e significado, ele é incisivo ao afirmar que o
significante de um signo, ou seja, sua imagem acústica ou gestual, é imotivado.
Com isso, Saussure quer dizer que não existe nenhuma relação de
semelhança entre essa imagem acústica ou gestual e o conceito associado a
essa imagem. Para ele, o significante /mar/ do signo mar não tem nenhuma
relação com o conceito ao qual está associado. Nada nesse som nos dá a
idéia de mar. O fato de o som [maR] nos levar ao conceito que temos de mar é
resultado de uma convenção aceita pelos falantes do português.
Algumas pessoas se opuseram a Saussure, afirmando que as
onomatopéias são motivadas. Assim, por exemplo, ao falarmos do tic-tac de
um relógio, estaríamos capturando a semelhança que existe entre o signo tictac
e o barulho feito pelo relógio. A defesa de Saussure a essa crítica se
fundamenta em dois argumentos: primeiro, que as onomatopéias são raras
nas línguas; segundo, que sua escolha já é arbitrária, na medida em que elas
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
27
apenas se aproximam dos sons que ouvimos. Além disso, a arbitrariedade
desses signos também se revelaria no fato de que as onomatopéias se
conformam a todo o sistema fonético-fonológico da língua. Isso significa que,
por mais que tentemos criar signos por imitação aos sons e ruídos que
ouvimos, vamos fazer essas imitações valendo-nos do sistema do português, e
não realizando sons que não são próprios de dessa língua.
Neste momento, vocês que conhecem bem uma língua de sinais, devem
estar querendo fazer uma séria objeção a essa idéia de Saussure:
--“Mas, e as línguas de sinais? Muitos sinais de todas as línguas de
sinais do mundo são icônicos, ou seja, são representações da forma dos
objetos ou indivíduos aos quais eles se referem! Como é que Saussure pode
dar conta desse fato?
Bem, como já dito, Saussure não leva em consideração as línguas de
sinais. Em sua época, não se sabia quase nada sobre essas línguas, e muitas
pessoas pensavam que os surdos se comunicavam por meio de gestos
assistemáticos. O que se pode dizer hoje em dia é que não só nas línguas de
sinais, mas também nas línguas orais, muitos signos são motivados: seus
significantes procuram imitar ou o som que um objeto faz (no caso das línguas
orais), ou a forma que um objeto tem (no caso das línguas de sinais). Mais do
que isso, em algumas línguas, algumas entidades são consideradas membros
de uma mesma classe por causa de algumas semelhanças que existem entre
elas. Assim, em japonês, o morfema hon é usado junto a nomes que designam
objetos longos e finos, como lápis, velas, árvores. Mas o uso desse morfema
também é aplicado a outros nomes, que não se referem a objetos longos e
finos, mas que designam certas atividades que podem ser assemelhadas a
objetos longos e finos, como ligações telefônicas, que envolvem fios, e que
atravessam longas distâncias, ou como tacadas de baseball, que fazem com
que a bola descreva uma trajetória longa, etc.
Mesmo Saussure já fazia uma diferença entre arbitrariedade absoluta e
arbitrariedade relativa do signo lingüístico. Para ele, um signo como vinte é
totalmente arbitrário ou imotivado. Mas um signo como dezenove é apenar
parcialmente arbitrário, porque ele faz lembrar os signos que entram em sua
composição, ou seja, dez e nove. O mesmo acontece com o signo pereira, que
lembra o signo pêra, e cujo sufixo remete a outras árvores como cerejeira,
macieira, jaqueira, etc. Se compararmos esses nomes de árvores a outros
como eucalipto, ou carvalho, vemos que os primeiros são mais motivados do
que os últimos.
Neste momento, vocês devem estar se perguntando o que isso tem a
ver com a dicotomia sintagma e paradigma.
Bem, o que Saussure diz é que a motivação parcial de um signo
lingüístico se explica por dois princípios: pela análise de um signo em signos
menores, o que evidencia uma relação sintagmática; e pela associação desses
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
28
signos a outros signos, o que evidencia uma relação paradigmática. Vejam
que, em um signo como pereira, não só a divisão sintagmática em dois
morfemas - pera- e -eira - como o sentido dessas unidades é fácil de ser
percebido, na medida em que elas participam de relações paradigmáticas
bastante claras: pêra se associa a cereja, a maçã, a laranja, a banana; e -eira
recebe seu valor a partir de sua associação com outros morfemas como -al, em
bananal, jaboticabal, laranjal, etc.
Saussure chega mesmo a afirmar que não existe língua em que nada
seja motivado. A seu ver, as línguas se colocam entre dois pólos - mínimo de
arbitrariedade e máximo de arbitrariedade, algumas tendendo mais para um
pólo, outras tendendo mais para outro. Mas é importante ressaltar que, quando
Saussure fala de mínimo de arbitrariedade, ele está pensando nos casos como
o de pereira, ou dezenove, discutidos acima. Ele não está, nem de longe,
pensando na forte iconicidade que as línguas de sinais apresentam. Os
estudos que têm sido feitos a respeito desse assunto pelos pesquisadores das
línguas de sinais são da mais alta importância, na medida em que eles têm
criado um forte impacto na ciência lingüística, até hoje muito influenciada pelo
pensamento de Saussure.
O que é importante ressaltar é que, dentro da noção de arbitrariedade
que Saussure desenvolve, está a noção de convencionalidade. Essa, sim, é
uma característica forte de todas as línguas humanas. Os signos lingüísticos
sempre são convencionais, mesmo quando são icônicos. Ser convencional
significa que eles são não são previsíveis, ou seja, nós não podemos adivinhar,
antecipadamente, como vai ser em uma língua, ou em outra, o signo que se
refere a uma determinada entidade.
--“Bem - vocês podem objetar - como é que algo pode ser icônico e
convencional ao mesmo tempo?”
Novamente, as línguas de sinais trazem muitos exemplos dessa
possibilidade de combinação. O sinal equivalente a ÁRVORE, na língua de
sinais brasileira, é bastante icônico: o braço levantado faz pensar no tronco de
uma árvore, e a mão espalmada e executando um movimento de giro faz
pensar na copa da árvore, com a folhas balançando ao vento. Na língua de
sinais chinesa, o sinal de ÁRVORE também é bastante icônico: com o polegar
e o indicador abertos e relaxados, e os demais dedos fechados, as mãos
voltadas uma para a outra sobem da altura do abdômen até a altura do peito do
sinalizador. Isso faz lembrar o tronco de uma árvore.
Mas, vejam que interessante! Cada língua de sinais tem um signo
icônico diferente! Isso mostra como a língua é convencional. Cada povo, cada
língua, representa iconicamente uma parte do objeto. Não precisa ser
necessariamente a mesma parte. Nem há maneiras de se prever qual parte vai
ser. Por isso é que podemos dizer que, apesar de as línguas apresentarem
graus maiores ou menores de motivação, elas são sempre convencionais.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
29
Vejam como essa idéia de convencionalidade combina com o que
Saussure ensina sobre a constituição do significante e do significado
lingüísticos. Como nós já vimos, cada língua faz recortes na massa amorfa do
pensamento e na massa amorfa fônica de uma maneira própria, que pode ser
bastante diferente da maneira de uma outra língua. Isso também envolve a
noção de convencionalidade. Vocês se lembram do exemplo da diferença
entre inglês e português de que nós falamos? Em português, temos um só
signo para fazer referência ao animal porco e a sua carne; em inglês, existem
dois sinais: um para fazer referência ao animal, outro para fazer referência à
carne. Como é que essa diferença poderia ser prevista, em termos
estritamente lingüísticos? Não há meios. Esses recortes são puramente
convencionais.
Vamos passar agora à última dicotomia saussuriana.
2.4 Sincronia e Diacronia
Para Saussure, a lingüística é um tipo de ciência que deve se construir
sobre dois eixos: o do estado e o das evoluções. O eixo do estado é o eixo
sincrônico: nele, a língua é estudada como ela se apresenta em um
determinado momento de sua história. Toda intervenção do tempo é excluída.
O eixo das evoluções é o eixo diacrônico: nele, a língua é analisada como um
produto de uma série de transformações que ocorrem ao longo do tempo.
Por exemplo, podemos estudar o português por qualquer um desses
dois eixos. Se fazemos um estudo sincrônico, analisamos o português da
maneira como ele é hoje. Em nosso estudo sincrônico, não nos interessa
saber quais os estágios de evolução pelo qual essa língua passou, desde o
latim até os nossos dias. Se, por outro lado, fazemos um estudo diacrônico,
procuramos entender o que foi que aconteceu na língua, ao longo de sua
história, para que ela tivesse as características que tem em uma determinada
época.
Para esclarecer a questão, Saussure usa a metáfora de um jogo de
xadrez. Cada posição do jogo corresponde a um estado da língua. O valor
das peças depende de sua posição no tabuleiro. Da mesma maneira, na
língua, cada elemento tem seu valor pela oposição que estabelece em relação
a outros elementos.
Cada estado desses, quer do jogo de xadrez, quer do sistema
lingüístico, é sempre momentâneo. Para passar de um momento a outro, ou
de um estado a outro, uma peça é deslocada. Não é necessário que se mude
mais que uma peça. Entretanto, essa mudança tem efeitos em todo o jogo.
Não há como prever com exatidão quais são esses efeitos, mas o
deslocamento de uma peça acaba por ter conseqüências sobre as peças que
não foram movidas.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
30
Saussure enfatiza que, tanto no xadrez, quanto na língua, é preciso
diferenciar claramente os deslocamentos, de um lado, dos estados de equilíbrio
que os antecedem ou que os sucedem, de outro. Quando o jogador está
pensando sobre o jogo, ele analisa sucessivamente os diversos estados pelos
quais o jogo passa. Ele não fica se preocupando em lembrar como a
configuração do tabuleiro chegou ao estado a que chegou. O mesmo acontece
com a língua. O falante de uma língua conhece essa língua da maneira como
ela se apresenta durante seu tempo de vida. Ele não se preocupa com sua
evolução ao longo dos séculos.
Saussure faz apenas uma ressalva a respeito da comparação entre a
língua e o jogo de xadrez: no jogo, o jogador tem a intenção de mover uma
peça e, assim, alterar o estado do jogo. Na língua, isso não acontece. As
mudanças não são intencionais. Como nós já vimos, não é possível que um
falante de uma língua decida impor uma mudança em sua língua, por sua
vontade. A língua muda naturalmente. Em alguns poucos casos, existem
algumas pressões externas que provocam uma mudança lingüística. Essas
pressões podem ser conseqüência de contacto com outras línguas, ou podem
ser devidas a algumas mudanças sociais. Mas, muitas vezes, as línguas
mudam por razões internas à própria língua. Nós já vimos um exemplo de
mudança do português que parece não ter sido causada por nenhum fator
externo. Vocês se lembram? Trata-se do aparecimento dos fonemas /´/ (-lh-)e
/ø/ (-nh-). Como já vimos, esses fonemas não existiam em latim. A primeira
mudança que favoreceu seu aparecimento no português foi a palatalização dos
fonema /l/ e /n/ diante do fonema /i/, como em /filiu/-/fi´u/, /vinia/-viøa/. A
seguir, esse som palatal passou a distinguir significados, permitindo pares de
signos como /ka´a/-/kala/, /seøa/sena/. Aparentemente, nenhuma dessas
mudanças foi causada por qualquer fator externo. Elas parecem ter sido
mudanças espontâneas e fortuitas.
Vocês devem ter uma centena de perguntas e observações a fazer. De
fato, a comunidade surda no Brasil, de maneira geral, tem um grande interesse
pela história da língua de sinais brasileira, e pelas transformações pelas quais
ela tem passado, desde o momento em que a língua de sinais francesa, sua
mãe, chegou ao Brasil. Apesar de muito se conversar a respeito desse
assunto, ao que parece não existem pesquisas profundas sobre as mudanças
que ocorreram na LIBRAS. Vocês podem ir pensando sobre esse assunto,
para discutir a questão em mais detalhes na disciplina de Sociolingüística.
Com isso, podemos encerrar esse nosso primeiro contacto com os
ensinamentos de Saussure. Nós vimos como Saussure diferencia língua de
linguagem. Vimos, também, que Saussure define a língua como um sistema
de valores, em que o valor de cada unidade é computado pela diferença que
essa unidade apresenta em relação a outras unidades do sistema, e em
relação a todo o sistema. Vimos que o cálculo do valor dos elementos
lingüísticos deve ser feito levando em conta dois eixos: o das relações
sintagmáticas, ou combinatórias; e o das relações paradigmáticas, ou
associativas. Nós também estudamos a diferença que existe entre esse
sistema de valores (que é a língua) e a fala, que é a manifestação externa
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
31
desse sistema de valores. Nós discutimos, ainda, a questão da constituição do
signo lingüístico. Um signo lingüístico é a associação indissolúvel de um
significante e de um significado, ambos obtidos, respectivamente, de uma
formatação feita em uma massa amorfa fônica/gestual, e em uma massa
amorfa de pensamento. Nós vimos como a constituição do signo pode ser
motivada, mas é sempre convencional. Por fim, vimos que a língua pode ser
estudada em sua dimensão estática, e em sua dimensão evolutiva ou histórica.
Podemos, agora, passar a estudar uma outra teoria lingüística, que tem
uma visão de língua bastante diferente daquela proposta por Saussure: a
teoria chomskyana.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
32
Unidade 3:
A língua para Noam Chomsky
Na segunda parte do curso, nós vimos que definir língua não é fácil.
Nós vimos que cada teoria tem sua própria definição de língua, e propõe
analisar os fenômenos lingüísticos a partir dessa definição. Na terceira parte
do curso, nós vimos o conceito de língua para Saussure. Vimos que a língua é
um sistema de valores, cujos elementos, que são os signos, são definidos pela
diferença que apresentam em relação a outros signos. Vimos, também, que a
língua é um fenômeno social, ou seja, é o produto de uma convenção
estabelecida entre os membros de um determinado grupo. Para Saussure,
língua e fala não se confundem. A fala é a manifestação externa da língua, e,
para Saussure, não deve ser objeto de estudo da lingüística. Nos termos da
teoria saussuriana, a lingüística deve estudar apenas a língua.
Agora nós vamos começar a estudar uma outra teoria lingüística que
define a língua de uma maneira diferente da de Saussure. Essa teoria foi
iniciada por um lingüista americano, chamado Noam Chomsky, no final dos
anos 60. Hoje em dia, essa teoria é conhecida como Gramática Gerativa.
À medida que formos avançando em nossas aulas, vamos ver que
existem algumas compatibilidades entre a teoria saussuriana e a Gramática
Gerativa. Entretanto, existe uma diferença fundamental entre os dois modelos
teóricos: enquanto, na teoria saussuriana, a língua é considerada um objeto
fundamentalmente social, na Gramática Gerativa, a língua é um objeto mental.
Para Chomsky, a língua é um sistema de princípios radicados na mente
humana. É esse sistema de princípios mentais que é o objeto de estudo da
Gramática Gerativa. Por isso, dizemos que a Gramática Gerativa é uma teoria
mentalista. Ela não se interessa pela análise das expressões lingüísticas
consideradas em si mesmas, separadas das propriedades mentais que estão
envolvidas em sua produção e compreensão. Ela também não se interessa
pelo aspecto social que a língua apresenta. Seu foco está no aspecto mental
da língua.
Uma pergunta que vocês devem estar querendo fazer é a seguinte:
--“Por que o fato de a Gramática Gerativa ser mentalista é tão importante
para diferenciá-la da teoria saussuriana?
Bem, Chomsky não foi o primeiro a se interessar pelos aspectos mentais
da produção e da compreensão lingüística. Como nós vimos no início da
unidade 2, desde a Antigüidade, muitos estudiosos da linguagem se
interessaram pelas relações entre língua e pensamento. Mas, depois de
Saussure, os estudos lingüísticos assumiram um viés eminentemente social. O
fato de Saussure ressaltar que o signo lingüístico é convencional, e que,
cognitivamente, nós não organizamos o mundo antes da língua fez com que,
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
33
de maneira geral, os lingüistas da primeira metade do século XX deixassem de
considerar que, antes de mais nada, a língua é um fenômeno que parece ser
exclusivo da espécie humana. Ou seja, ela é adquirida e usada por seres
dotados de um tipo particular de estrutura e organização mental. Assim sendo,
as propriedades constitutivas e funcionais da mente humana não podem deixar
de ser levadas em consideração, quando temos por objetivo o entendimento do
que é a língua. Foi Chomsky que, a partir de 1957, retomou o percurso que
muitos estudiosos antigos já haviam trilhado, ressaltando a importância da
investigação das relações entre mente e língua. De uma forma mais radical do
que outros pesquisadores que o antecederam, Chomsky parte da hipótese de
que existe um módulo lingüístico em nossa mente, constituído de princípios
responsáveis pela formação e compreensão das expressões lingüísticas, e
especificamente dedicado à língua. Esse módulo lingüístico é chamado de
faculdade da linguagem. Essa faculdade da linguagem é inata, ou seja, todos
os seres humanos nascem dotados dela. A faculdade da linguagem é parte da
dotação genética da espécie humana.
Neste momento, vocês poderiam me fazer a seguinte pergunta:
--“Mas Saussure também dizia que a linguagem é uma faculdade
humana, uma capacidade que os homens têm para produzir, desenvolver,
compreender a língua e outras manifestações simbólicas semelhantes à língua.
Qual é a diferença que existe entre essa idéia de Saussure e a faculdade da
linguagem de Chomsky?”
Essa é uma pergunta complexa. Ela precisa ser respondida por partes.
A primeira observação que é preciso fazer é a de que, para Saussure, a
faculdade da linguagem é algo que capacita os homens a produzirem e
compreenderem todas as manifestações simbólicas, inclusive a língua.
Diferentemente, o que Chomsky chama de faculdade da linguagem é um
módulo da mente especificamente associado à língua, e não a outras
linguagens (como a pintura, a música, a dança, etc.). A segunda observação
que é importante fazer é a de que Saussure não é muito específico a respeito
do que é essa faculdade, que ele chama de linguagem. Como seu objetivo é a
análise da língua em seus aspectos convencionais ou sociais, a capacidade
que os homens têm de se manifestar lingüisticamente não é de interesse para
a teoria. Desse modo, Saussure não explicita a relação que essa faculdade
que permite a linguagem apresenta com a cognição de maneira geral. Por
outro lado, para Chomsky, o que ele chama de faculdade da linguagem é um
módulo cognitivo independente, especificamente associado à língua. Ao ver de
Chomsky, é a faculdade da linguagem que deve ser o objeto central do estudo
de uma teoria lingüística.
No âmbito da Gramática Gerativa, essa faculdade da linguagem, em seu
estado inicial, ou seja, no estado em que ela está quando a criança nasce, é
considerada uniforme em relação a toda a espécie humana. Ou seja, ela é
igual em todas as crianças, quer sejam elas surdas ou ouvintes, quer venham
elas a ser falantes de português, de inglês, de língua de sinais brasileira, de
língua de sinais nicaragüense. Todo ser humano é dotado da faculdade da
linguagem, e toda criança parte do mesmo estado inicial em seu processo de
aquisição de primeira língua. Esse estado inicial da faculdade da linguagem,
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
34
que é parte da dotação genética da espécie humana, e, portanto, inato, chamase
gramática universal.
À medida que cada criança vai sendo exposta a um ambiente lingüístico
particular, esse estado inicial da faculdade da linguagem vai se modificando.
Se a criança é ouvinte, e nasce e cresce em um ambiente em que se fala
português, a interação da informação genética que ela traz (no estado inicial da
faculdade da linguagem), com os dados lingüísticos do português a que ela é
exposta, vai resultar na aquisição da língua portuguesa, e não de uma outra
língua. Se, por outro lado, a criança for surda, filha de pais surdos sinalizados,
ela vai ser exposta a um ambiente lingüístico em que é a língua de sinais
brasileira que vigora. A interação da informação genética de sua faculdade da
linguagem com os dados da língua de sinais brasileira vai fazer com que a
criança desenvolva o conhecimento dessa língua, não de outra.
Vejam, então, que, para a Gramática Gerativa, a língua pode ser
comparada a um ser vivo: ao nascer, esse ser traz em seus genes a
capacidade de crescer, de se desenvolver, de amadurecer. Se esse ser vivo
recebe nutrientes, ele cresce e se desenvolve. Se não, ele não sobrevive. O
mesmo acontece com a informação genética da faculdade da linguagem: em
seu estado inicial, que é a gramática universal, ela tem uma pré-disposição
genética para crescer e se desenvolver e se tornar uma gramática estável,
como a do português, do japonês, da libras, da ASL. Mas, para isso, ela
precisa receber nutrientes, ou seja, ela precisa ser exposta a um ambiente
lingüístico; se isso não acontecer, essa informação lingüística inata não vai
sobreviver.
Para a Gramática Gerativa, a noção de língua está fortemente associada
ao estado inicial da faculdade da linguagem e aos resultados do
desenvolvimento desse estado inicial pelo contacto com um determinado
ambiente lingüístico. Os objetivos mais importantes dessa teoria são, então, os
seguintes:
i. descrever o conhecimento do falante de uma língua em particular,
como, por exemplo, o português ou a língua de sinais brasileira;
ii. caracterizar o tipo de conhecimento inato que a criança traz para
o processo de aquisição de uma língua; e
iii. explicar os processos que levam uma criança desse ponto inicial
do conhecimento lingüístico inato até o conhecimento de sua
língua.
Vejam como esses objetivos interagem: qualquer proposta sobre o que
é o conhecimento lingüístico do falante de uma língua deve ser compatível com
os conhecimentos lingüísticos iniciais que a criança traz em sua faculdade da
linguagem. Ao mesmo tempo, qualquer proposta sobre o que são os
conhecimentos lingüísticos iniciais, que são parte da informação genética da
faculdade da linguagem, deve poder explicar as características do
conhecimento lingüístico de um falante adulto.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
35
Para a Gramática Gerativa, seu objeto de estudo é a língua, mas
entendida como o conhecimento que um falante tem de sua língua,
desenvolvido a partir da informação genética trazida pela faculdade da
linguagem. Mas, atenção! Vejam que eu estou dizendo que, para a teoria
chomskyana, seu objeto é a língua só entendida como esse conhecimento
lingüístico desenvolvido a partir do estado inicial da faculdade da linguagem!
Não é tudo aquilo que nós chamamos de língua em nosso dia-a-dia.
Tecnicamente, o objeto de estudo da Gramática Gerativa, que é a língua
entendida desse modo particular, pode ser chamado de competência.
Competência é o conhecimento mental que um falante tem de sua língua. É o
resultado do desenvolvimento do conhecimento lingüístico inato, a partir de sua
interação com dados de uma determinada língua. Competência se opõe a
performance, que é o uso concreto da língua. Para Chomsky, quando usamos
a língua em nossa comunicação, lidamos com elementos de natureza social e
psicológica que são externas à língua, e que se combinam de forma complexa
com nossa competência. Por exemplo, começamos a dizer alguma coisa, e, de
repente, esquecemos do que estávamos falando. Essa é uma falha de nossa
memória ou de nossa atenção, que influi na exteriorização de nossa língua.
Mas essa é uma questão de performance, não de competência. Não significa
que não conhecemos nossa língua. Significa apenas que tivemos um
problema de natureza psicológica no uso do conhecimento que temos de nossa
língua.
Um outro exemplo que podemos dar para esclarecer a diferença entre
competência e performance diz respeito a questões sócio-culturais
relacionadas ao uso da língua. Comparemos dois brasileiros, falantes nativos
de português, um aluno universitário, o outro, um trabalhador com baixo nível
de escolarização. Os dois tiveram um problema relacionado a um buraco
enorme que apareceu em uma rua da cidade. Os dois ficaram igualmente
indignados com o pouco caso que a prefeitura está dando para o calçamento, e
pensam que devem escrever uma carta para o jornal, fazendo uma reclamação
pública. Qual dos dois vocês acham que vai ter mais facilidade para escrever
essa carta da maneira apropriada para ser publicada em um jornal? Em
princípio, deve ser o estudante universitário. Uma das coisas que nós
aprendemos na escola é a “usar” melhor nossa língua. Nós aprendemos como
devemos nos dirigir a pessoas que ocupam cargos importantes, nós
aprendemos como escrever dissertações, descrições, cartas. Nós aprendemos
a lidar com estilos diferentes de cartas: sabemos como devemos escrever uma
carta para nossos amigos, nossos pais, e também aprendemos a escrever
cartas para empresas, como jornais, companhias aéreas, escolas, ou para
órgãos oficiais, como a universidade, como a prefeitura, o governo do estado.
Uma pessoa com baixo nível de escolarização tem uma competência do
português igual à de um estudante universitário. Entretanto, sua performance
tende a ser bastante diferente, ou seja, sua habilidade de uso de sua
competência em situações sociais de diversas naturezas é mais limitada.
Vocês devem estar achando tudo isso muito difícil. De fato, não é fácil
compreender esses conceitos. Vocês devem estar querendo fazer a seguinte
pergunta:
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
36
--“Como é que a competência lingüística de um estudante universitário
pode ser igual à competência de uma pessoa com baixo nível de
escolarização? Afinal, para chegar à universidade, um aluno precisa ter
estudado português por anos e anos? Como é que uma pessoa que só fez o
curso primário pode ter a mesma competência do português que esse aluno
universitário tem?”
Lembrem-se de que eu disse que a visão de língua (ou, tecnicamente,
de competência) que a Gramática Gerativa tem é muito restrita. Ela é o
conhecimento lingüístico desenvolvido a partir da interação da informação
genética que toda criança traz em sua faculdade da linguagem, com os dados
lingüísticos a que ela é exposta. Nada além disso. Vejam, então, que língua,
como entendida pela Gramática Gerativa, não é aprendida na escola. Em
condições familiares normais, a língua é adquirida antes de entrarmos na
escola, no nosso convívio com nossos pais, nossos irmãos, e nossos amigos.
Essa língua que é adquirida dessa maneira é que constitui nossa competência.
Por isso é que, dentro da visão da Gramática Gerativa, em princípio, não existe
diferença entre a competência de um estudante universitário e de um operário
com baixo nível de escolarização. Os dois nasceram biologicamente iguais, ou
seja, os dois têm a mesma faculdade da linguagem com as mesmas
informações lingüísticas genéticas. Os dois cresceram em ambientes
lingüísticos em que o português era a língua falada. Em conseqüência, os dois
desenvolvem a mesma língua, a mesma competência.
Uma outra objeção que vocês podem fazer é a seguinte:
--“Sim, mas e se o estudante universitário tiver nascido em uma família
rica, composta por pessoas cultas, com alto nível de escolarização, e o
operário tiver crescido em uma favela, convivendo com pessoas analfabetas?”
Pois é, a diferença que esse desnível sócio-cultural-econômico causa é
do nível da performance, não da competência. Ao ver da Gramática Gerativa,
a competência continua sendo a mesma, tanto no caso da pessoa que convive
com pessoas com alta escolarização, quanto no caso da pessoa que convive
com analfabetos. Mas, vamos ver alguns exemplos, para que a Gramática
Gerativa fique mais bem esclarecida.
3.1 Exemplos concretos para esclarecer o que é a Gramática Gerativa
Vamos voltar a um ponto que eu acho que ficou pendente. No início de
nossa discussão sobre a teoria chomskyana, nós vimos que, para essa teoria,
a língua é um sistema de princípios inscritos na mente humana. Vejam que,
para Chomsky, o foco não está no signo lingüístico propriamente dito, mas nos
princípios que constroem signos lingüísticos de um tipo particular, como
sentenças, por exemplo. Em outras palavras, podemos dizer que, de maneira
geral, a Gramática Gerativa não está interessada em questões que são
centrais na teoria saussuriana, como o fato de o inglês ter dois signos
diferentes para a referência do animal carneiro (sheep), e da carne de carneiro
(mutton), enquanto o português tem um só. A teoria chomskyana tem o
objetivo de entender a formação de signos lingüísticos construídos por
operações sintáticas e, parcialmente, por operações morfológicas. Por isso, os
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
37
estudos feitos no âmbito dessa teoria focalizam, basicamente, a estrutura das
sentenças, e também algumas questões relacionadas à flexão de palavras.
Assim, por exemplo, a Gramática Gerativa vai procurar explicar o contraste
entre português e alemão, que mostramos com as sentenças abaixo:
(10)
Hoje eu viajo para Berlim.
SUJEITO VERBO
(11)
Heute fahre ich nach Berlin.
hoje viajo(de carro) eu em direção
a
Berlim
VERBO SUJEITO
‘Hoje eu viajo para Berlim.”
A questão é: por que uma língua como o português constrói sentenças
preferencialmente com o sujeito na frente do verbo, independentemente de
haver uma outra palavra antes do sujeito, como hoje, na sentença (10),
enquanto o alemão precisa necessariamente ter o verbo na segunda posição
da sentença, o que às vezes força o sujeito a aparecer depois do verbo, como
na sentença (11)?
No que diz respeito à flexão de certas palavras, a Gramática Gerativa se
interessa, por exemplo, por questões como a levantada pelo contraste entre
português e inglês, mostrado abaixo:
(12)
o+s menino+s inteligente+s
artigo+PLURAL substantivo+PLURAL adjetivo+PLURAL
(13)
the intelligent boy+s
o inteligente meninos
artigo adjetivo substantivo+PLURAL
‘os meninos inteligentes’
Os exemplos (12) e (13) mostram o que chamamos de sintagmas
nominais. Sintagmas nominais são constituintes da sentença que englobam o
substantivo (ou nome), os artigos, pronomes demonstrativos, pronomes
indefinidos e os adjetivos que estão associados a ele. Nos exemplos, temos o
sintagma nominal os meninos inteligentes, do português, e o sintagma nominal
equivalente do inglês, the intelligent boys. Vejam que, em português, a flexão
de plural se aplica tanto ao substantivo, quanto ao artigo e ao adjetivo que
formam o sintagma nominal. Em inglês, diferentemente, a flexão de plural só
se aplica ao substantivo. O artigo e o adjetivo não são flexionados.
Uma outra questão que interessa à Gramática Gerativa é a seguinte.
Em português, nossas sentenças interrogativas construídas com pronomes
interrogativos (como quem, o que, quando) podem ser de dois tipos: ou o
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
38
pronome interrogativo aparece no início da sentença, como em (14) e (15), ou
ele aparece em sua posição de origem, como em (16) e (17).
(14) Quem o João viu ontem?
(15) O que você fez no fim-de-semana?
(16) O João viu quem ontem?
(17) Você fez o quê no fim-de-semana?
Em inglês, não é possível construírem-se sentenças interrogativas sem o
pronome interrogativo aparecer no início da sentença. Em outras palavras,
inglês só tem a opção de construir sentenças interrogativas semelhantes às
sentenças (14) e (15) do português. A pergunta que a Gramática Gerativa faz
é: por que o português tem duas opções de fazer sentenças interrogativas, e o
inglês tem uma só?
Vejam que interessante. Todas essas questões apresentadas,
comparando o português com outras línguas orais, são aplicáveis também ao
contraste que devemos fazer entre a gramática das línguas orais e das línguas
de sinais. Por exemplo, uma questão recorrente na literatura sintática das
línguas de sinais diz respeito à ordem das sentenças dessas línguas. A
maioria dos autores tem concordado que a ordem básica das sentenças, pelo
menos da ASL e da libras, é SUJEITO - VERBO - OBJETO. Mas, sendo
assim, é preciso explicar o que acontece com sentenças em que o objeto
aparece na frente do sujeito, por exemplo, como em (18):
(18) ______
LIVRO PEDRO COMPRAR ONTEM.
Objeto Sujeito Verbo
A pista para a explicação para a ordem dos constituintes da sentença
(18) parece estar na marca não-manual que acompanha a sinalização de
LIVRO. Infelizmente, não podemos nos estender sobre esse assunto aqui.
Vocês vão ver isso melhor quando cursarem a disciplina denominada Sintaxe.
A questão da flexão dos constituintes internos ao sintagma nominal
também é de interesse para o estudo das línguas de sinais. Até onde se saiba,
de maneira geral, as línguas de sinais não têm marca de flexão de plural nos
nomes e nos adjetivos. Mas, o fato de uma língua não ter uma marca de flexão
não significa que ela não tenha o conceito associado àquela marca. Em outras
palavras, o fato de que as línguas de sinais não têm um morfema de plural -s,
que nós temos em português, não significa necessariamente que essas línguas
não têm outras estratégias para diferenciar singular de plural. A pergunta que
a Gramática Gerativa se faz é: quais são essas outras estratégias e como é
que elas operam?
O último conjunto de sentenças apresentado acima também é relevante
para o estudo das línguas de sinais. Vejam que, enquanto o português do
Brasil aceita tanto o pronome interrogativo no início da sentença (ver exemplos
(14) e (15)), como em sua posição original no interior da sentença (ver exemplo
(16) e (17)), o inglês só aceita esses pronomes no início da sentença. A língua
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
39
de sinais brasileira, pelo que mostram alguns trabalhos recentes, parece
preferir um outro padrão: ou o pronome interrogativo aparece em sua posição
original no interior da sentença, como em (19), ou o pronome interrogativo
aparece duas vezes, uma no início da sentença, outra no final da sentença,
como em (20):
(19) ______
JOÃO COMPRAR O QUÊ
(20) _____________________________
QUEM COMPRAR CARRO QUEM
No curso de Sintaxe e Morfologia, vocês vão estudar algumas propostas
de explicação que são fornecidas para esses fenômenos das línguas de sinais.
Por enquanto, vocês devem ver esses exemplos apenas como uma ilustração
das questões que são feitas no âmbito da Gramática Gerativa.
A QUESTÃO DA AQUISIÇÃO DE LÍNGUA MATERNA
A questão da aquisição de língua materna, ou seja, a questão de saber
como a gramática se desenvolve na mente de um falante, é o ponto central da
teoria chomskyana. É bom ressaltar, no entanto, que essa questão não é
exclusiva da teoria chomskyana. Trata-se de um problema que vem sendo
debatido ao longo de toda a história do pensamento filosófico e lingüístico
ocidental.
De maneira bastante simplificada, podemos dizer que esse debate
apresenta duas posições extremas: de um lado, estão aqueles que acreditam
que a língua é um objeto externo à mente humana; de outro, estão aqueles
que, como Chomsky, consideram que a língua é um objeto mental. Para os
primeiros, um falante chega ao conhecimento de sua língua por meio de um
sistema de aprendizagem, que envolve processos de observação,
memorização, associação, etc. Para Chomsky e seus seguidores,
diferentemente, os seres humanos nascem dotados de um conjunto de
estruturas lingüísticas mentais altamente abstratas e geneticamente
determinadas, que funcionam como uma mapa, orientando o processo de
aquisição de língua pela criança. Como já vimos, esse conjunto de estruturas
mentais que são parte de nossa dotação genética se chama gramática
universal. Vejam que esse nome se deve ao fato de que esse conjunto de
estruturas lingüísticas mentais é concebido como sendo geneticamente
determinado. Se essas estruturas são geneticamente determinadas, e se o
conjunto de todos os humanos, sejam eles brasileiros, japoneses, alemães,
surdos ou ouvintes, constitui uma única espécie, então, esse conjunto de
estruturas tem que se universal.
Vocês devem estar aflitos, querendo saber o que é exatamente essa
gramática universal. Bem, o que eu posso dizer para vocês, neste curso, é que
a Gramática Gerativa tem feito muitos avanços no sentido de estabelecer o que
é esse conhecimento lingüístico inato. Basicamente, trata-se de um conjunto
de princípios muito abstratos, que só ficam claros quando se conhece bem a
teoria. Se vocês, um dia, depois de terem estudado bastante lingüística,
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
40
resolverem aprofundar seu conhecimento sobre a Gramática Gerativa, vocês
vão entender melhor essa questão. Em um curso de Introdução aos Estudos
Lingüísticos, explicitar os princípios que são parte da gramática universal é algo
que traz um peso desnecessário ao curso.
Mas vamos seguir os passos daqueles que trabalham no âmbito da
Gramática Gerativa, e assumir que a gramática universal existe. Se todos
nascemos com esse conhecimento que é universal, por que é que não falamos
todos uma única língua?
A Gramática Gerativa assume que, além da gramática universal, o
ambiente em que a criança cresce tem um papel fundamental na aquisição.
Apesar de já nascer com a gramática universal, uma criança que for privada de
um ambiente lingüístico não vai desenvolver língua nenhuma. É preciso não só
que haja pessoas usando língua à sua volta, mas também que a criança tenha
acesso a essa língua. Vejam que o que acontece, infelizmente, com muitas
crianças surdas que nascem em famílias ouvintes é que, embora elas cresçam
em um ambiente lingüístico, elas não têm acesso à língua que está à volta
delas, porque não ouvem. É por isso que é tão importante que famílias
ouvintes que tenham crianças surdas imediatamente aprendam língua de
sinais, e imediatamente providenciem o contacto de suas crianças surdas com
outros surdos. Sem isso, essas crianças não têm como adquirir uma língua
naturalmente.
Mas, voltemos à questão do ambiente lingüístico. O que Chomsky
afirma é que, apesar de todos começarmos com um mesmo conhecimento
lingüístico, que é a gramática universal, esse conhecimento vai se desenvolver
de maneira diferente, caso vivamos em um ambiente em que se fale o
português, o alemão, ou alguma língua de sinais. É da interação da gramática
universal com o ambiente lingüístico que se desenvolvem as gramáticas dos
falantes do português, do alemão, ou de qualquer língua de sinais.
Vamos explorar um pouco mais a questão da interação entre o ambiente
lingüístico e a gramática universal, no processo de aquisição. O problema
central da aquisição, segundo Chomsky, é o que se chama problema de
Platão: como é que um falante adulto tem um conhecimento tão complexo e
rico sobre sua língua, se os dados a que ele é exposto em seu ambiente
lingüístico são tão pobres?
Vocês, certamente, querem perguntar:
--“O que a Gramática Gerativa quer dizer quando afirma que os dados
do ambiente lingüístico são pobres? Será que tem alguma coisa a ver com a
classe social a que uma determinada criança pertence?”
Não. Para Chomsky, os dados lingüísticos a que qualquer criança é
exposta durante o período de aquisição são sempre pobres,
independentemente do grupo social com o qual ela convive. Pessoas cultas e
pessoas ignorantes, pessoas ricas e pessoas pobres, todas são expostas a
dados lingüísticos insuficientes para explicar todo o conhecimento lingüístico
que elas têm de sua língua. Em outras palavras, todos nós, milionários ou
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
41
mendigos, universitários ou analfabetos, sabemos muito mais sobre nossa
língua, do que aquilo que podemos observar em nosso ambiente lingüístico.
Existem propriedades de nossas línguas que nós conhecemos, mas que, de
maneira geral, podemos apostar que não fazem parte dos dados lingüísticos a
que somos expostos. Também, temos muito mais informações sobre nossa
língua do que aprendemos na escola. Se o ambiente lingüístico em que
crescemos não nos fornece essas informações, e se a escola não nos ensina
toda a gramática de nossa língua, como é que chegamos a ter esse
conhecimento tão amplo e complexo dela?
Para Chomsky, a única solução para o problema de Platão é a de se
assumir que a mente da criança, equipada com a gramática universal, guia a
criança no processo de aquisição, de um modo restrito e determinado, fazendoa
chegar a uma gramática maior e mais complexa do que os dados a que ela é
exposta deixam transparecer.
Essa gramática final ou adulta, que é o conhecimento lingüístico de um
falante de uma determinada língua, não só envolve informações a respeito do
que é possível nessa língua, mas também a respeito do que não é possível.
Ou seja, a criança desenvolve, também, um conhecimento sobre o que não é
aceitável em sua língua. A questão que se coloca, então, é: como é que a
criança desenvolve esse conhecimento negativo (aquilo que não é possível),
quando ela é exposta somente a dados positivos (aquilo que é possível)? Para
Chomsky e seus seguidores, apenas um mecanismo inato, extremamente
complexo e abstrato, como a gramática universal, pode explicar o
desenvolvimento desse tipo de conhecimento lingüístico.
Vamos passar agora a ver como essas idéias se integram em um
modelo teórico. Ao longo de sua história, a Gramática Gerativa tem sempre
sido revista, de maneira a incorporar os novos achados, e adaptar o modelo
teórico aos avanços sugeridos pelas descrições de mais e mais línguas e pelas
investigações sobre a aquisição de língua materna. A versão mais recente da
Gramática Gerativa é chamada de Modelo de Princípios e Parâmetros.
3.2 O modelo de princípios e parâmetros
Esse modelo teve início no início dos anos 80, e vem sendo revisto
desde meados dos anos 90. Esse modelo contribui com duas grandes
inovações. Primeiro, propõe a divisão da gramática em módulos, cada um com
sua própria organização, mas todos interagindo entre si. Segundo, a gramática
universal deve ser composta de dois tipos de princípios: alguns que são
rígidos e invariáveis, e que são incorporados por todas as línguas; outros que
são abertos, oferecendo em geral duas possibilidades de valores, que vão ser
fixados ao longo do processo de aquisição, com base na informação obtida por
meio do ambiente lingüístico em que a criança se desenvolve. Esses princípios
abertos são chamados parâmetros. Daí o nome do modelo de princípios e
parâmetros. De acordo com esse modelo, a aquisição de língua materna
consiste em: (i) aprender as formas lexicais da língua, e (ii) atribuir ao
parâmetros o valor que eles têm nessa determinada língua. Vejam que a
gramática universal continua liderando o processo de aquisição e o
desenvolvimento do conhecimento lingüístico. Apesar de os parâmetros serem
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
42
abertos, eles constituem a única opção possível de variação entre as línguas,
no que diz respeito às suas estruturas gramaticais. Além disso, os parâmetros
são em número bastante restrito, e, por hipótese, têm apenas dois valores
possíveis.
Um exemplo de princípio rígido, que se aplica universalmente a todas as
línguas, é o princípio que determina que a estrutura das sentenças de todas as
línguas naturais não é linear, mas sim, hierárquica. Ou seja, no nível da
sentença, algumas relações entre constituintes são estabelecidas porque um
constituinte está em uma posição hierárquica superior à de outro, e não porque
ele está do lado do outro. Vamos pensar em uma sentença como (21):
(21) A amiga da irmã do João casou.
Quem é que casou? O João? A irmã do João? Ou a amiga da irmã do
João? Certamente que vocês todos responderiam que foi a amiga da irmã do
João que casou. Vejam, então, que o verbo casar, na sentença (21), não se
aplica ao substantivo que está mais próximo dele, que é João. Ele se aplica a
um constituinte nominal que está em uma posição mais alta de uma estrutura
hierárquica, que é amiga. Quando vocês fizerem a disciplina de Sintaxe, vocês
vão entender essa estrutura hierárquica melhor.
Um exemplo de parâmetro que é muito discutido, tanto nos estudos
sobre o português brasileiro, quanto sobre as línguas de sinais em geral, é o
que se chama parâmetro do sujeito nulo.
A Gramática Gerativa afirma que um dos princípios que compõem a
gramática universal é aquele que determina que toda sentença das línguas
humanas tenha uma posição de sujeito. Vocês devem estar achando isso
estranho, e querendo perguntar:
--“Como é que todas as sentenças de todas as línguas humanas têm
que ter um sujeito? Na língua de sinais brasileira, e no português, nem sempre
as sentenças têm sujeito!”
Vocês têm razão. Nas aulas de português, todos aprendemos que o
português pode ter aquilo que chamamos de sujeito oculto, como em uma
sentença como (22), ou aquilo que chamamos de sujeito indeterminado, como
em (23):
(22) Æ chegamos atrasados na escola.
(23) Æ roubaram o carro do meu vizinho.
O símbolo Æ representa o sujeito oculto nós, em (22), e o sujeito
indeterminado em (23). Nós ainda temos aquilo que é chamado de sentença
impessoal, ou sentença sem sujeito, como mostram os exemplos (24) e (25):
(24) Choveu muito ontem.
(25) Tinha muita gente na festa.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
43
Mas, para a Gramática Gerativa, todas essas sentenças têm uma
posição de sujeito. O que acontece é que, em algumas línguas, como o
português, o italiano, o espanhol, o chinês, e várias línguas de sinais, essa
posição de sujeito não precisa ser foneticamente preenchida.
--“O que significa dizer que a posição não precisa ser foneticamente
preenchida?”, vocês perguntam.
Significa que, nas línguas mencionadas, não é necessário que
pronunciemos ou sinalizemos um substantivo ou um pronome para preencher
essa posição. Em inglês e em francês, por exemplo, não é possível haver uma
sentença sem um sujeito foneticamente realizado. Vejam os exemplos do
inglês abaixo:
(26)
We arrived late.
Nós chegam
os
atrasados.
(27)
*Æ arrived late.
Æ chegam
os
atrasados.
(28)
It rained a lot.
choveu muito
(29)
*Æ rained a lot.
Æ choveu muito
Notem que, em inglês, não é possível deixar a posição de sujeito vazia,
mesmo em sentenças com verbos impessoais como rain (chover).
Para a Gramática Gerativa, o que acontece é que apesar de a gramática
universal ter um princípio que determina que todas as sentenças de todas as
línguas tenham uma posição de sujeito, o preenchimento fonético dessa
posição é um parâmetro: algumas línguas têm que sempre preencher essa
posição, outras não precisam preencher sempre.
Em outras palavras, a gramática universal põe à disposição da criança
um parâmetro com duas posições possíveis: a realização fonética obrigatória,
ou a realização fonética opcional do sujeito. Durante o processo de aquisição
da língua, a criança vai fixar esse parâmetro, em uma ou outra posição,
dependendo dos dados lingüísticos a que ela é exposta durante esse período.
Assim, uma criança que cresça em um ambiente em que se fala português não
vai ter dificuldades de fixar o parâmetro da sua língua na posição que diz que a
realização fonética do sujeito é opcional, na medida em que ela sempre
encontra dados como os que mostram os exemplos entre (22) e (25). O
mesmo vai acontecer com uma criança que cresça em um ambiente em que a
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
44
língua de sinais brasileira é usada. Tanto quanto o português, essa língua é
fixada para a posição em que a realização fonética do sujeito é opcional.
Com certeza, vocês vão aprender mais sobre essas questões nas aulas
da disciplina de Sintaxe e de Aquisição de Língua. Por enquanto, podemos
ficar por aqui. Nós vimos que, diferentemente de Saussure, Chomsky define a
língua como um objeto puramente mental, que é parte da dotação genética da
espécie humana, que se desenvolve ao longo do processo de aquisição pelo
contacto que a criança tem com os dados de uma língua particular. O objetivo
da Gramática Gerativa é descrever as línguas com vistas a estabelecer o que é
a gramática universal, e a entender como é que, a partir da gramática
universal, os falantes chegam à gramática de suas línguas.
Vocês podem querer fazer uma última pergunta, que é a seguinte:
--“Mas como é que Chomsky explica a relação entre significante e
significado, como é que ele explica que cada grupo social faz um recorte da
massa amorfa do pensamento e da massa amorfa fônica, criando signos que
são diferentes entre as línguas?”
Chomsky não explica isso. Essas questões não são parte do programa
de pesquisa traçado por ele. Isso não quer dizer que essas questões não
sejam interessantes, e que Chomsky e seus seguidores não dão importância a
elas. O que acontece é que, como já vimos no início do nosso curso, cada
teoria privilegia uma parte de seu objeto de estudo, deixando,
necessariamente, outras partes de lado. De maneira geral, a Gramática
Gerativa não se preocupa com questões de significado, especialmente no nível
do léxico. Sua atenção está voltada para questões estruturais da sentença, ou
seja, para a sintaxe.
Uma outra pergunta que deve estar passando pela cabeça de vocês é a
seguinte:
--“Se, para Chomsky, língua é esse conhecimento que trazemos como
parte de nossa dotação genética, que se desenvolve ao longo do processo de
aquisição, e se, basicamente, esse conhecimento diz respeito a questões
sintáticas, o que fazer com o resto? Ou seja, será que questões relacionadas
ao significado e ao discurso não são parte da língua?”
Essa é uma pergunta interessante, que tem sido feita por muitos outros
lingüistas que se opõem a Chomsky. Para esses outros lingüistas, chamar de
língua só esse conhecimento que se desenvolve a partir da gramática universal
é muito pouco. Afinal, o que nós percebemos é que existem muitos fenômenos
associados à língua que não são estruturais ou sintáticos. Será que isso não é
língua? Sim, sem dúvida que é. Mas esses fenômenos não são parte dessa
pequena porção de língua que é inata, e que é o foco central dos estudos em
Gramática Gerativa.
A seguir, vamos passar a ver alguns aspectos dos níveis de análise
lingüística.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
45
Unidade 4:
Lingüística geral: Fonética, Fonologia e Morfologia
Até o momento, em nossa disciplina “Introdução aos Estudos
Lingüísticos”, vimos o que é lingüística, e vimos duas visões sobre o que é a
língua humana. Essas duas grandes visões se opõem uma à outra, mas são
ambas muito influentes. Neste ponto que estamos iniciando agora, vamos
fazer um panorama geral dos níveis de análise em que são feitos os estudos
lingüísticos, procurando, tanto quanto possível, tratar dos fatos da língua de
uma maneira que seja aceita por todas as teorias. Ao longo do curso, vocês
vão ter disciplinas especiais para tratar de cada um desses níveis de análise
separadamente, em mais detalhes.
4.1 Fonética e Fonologia
Vocês devem se lembrar das aulas em que discutimos a noção de
significante e significado para Saussure, não é? Mesmo assim, vamos rever a
maneira como Saussure concebe o signo lingüístico, que é a menor unidade
lingüística que contém um significante e um significado. Lembrem-se de que,
para Saussure, significado e significante são duas unidades inseparáveis.
Juntas, elas constituem o signo lingüístico.
O significado é um conceito, uma representação mental que temos de
um objeto, de um evento, de uma sensação. O significante é uma
representação mental acústica (no caso das línguas orais) ou ótica (no caso
das línguas de sinais). Como já dissemos antes, é preciso entender essa
representação mental acústica ou ótica não como a realização física dos sons
ou dos gestos da fala, mas como algo que é tão conceitual quanto o
significado. Para facilitar o entendimento, podemos pensar nessa
representação mental acústica ou ótica como os sons ou sinais que fazemos
em nossa cabeça quando pensamos. Esses sons e esses sinais não são
realizados de fato. Eles não são exteriorizados. Eles se mantêm em nossas
cabeças apenas como representações mentais de sons ou de sinais.
Significante e significado são constituídos, ao mesmo tempo, a partir de
duas massas amorfas: a massa amorfa fônica, ou gestual, e a massa amorfa
do pensamento. Neste momento do curso, vamos nos concentrar na massa
amorfa fônica ou gestual e em sua formatação, que tem como resultado a
constituição do significante de um signo lingüístico.
A massa amorfa fônica ou gestual constitui-se de todos os sons ou
gestos que o ser humano é capaz de produzir. A partir dessa substância de
sons e gestos, a língua faz uma formatação, impondo divisões convencionais
que resultam nos conjuntos de sons ou gestos que são particulares a cada uma
das línguas.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
46
Pois bem, a fonética é a área da lingüística que se ocupa da descrição e
análise da massa amorfa fônica ou gestual. E a fonologia é a área de
lingüística que se ocupa da descrição e análise dos significantes de cada
língua, ou seja, da porção que cada língua formatou a partir da massa amorfa
fônica ou gestual. A seguir, vamos ver em mais detalhes o que cada uma
dessas áreas estuda, lembrando sempre que, nos semestres seguintes, vocês
vão ter uma disciplina exclusiva para tratar dessas duas áreas. Mas, antes
disso, vamos tratar de uma pergunta que vocês devem estar querendo me
fazer:
--“As línguas de sinais não são línguas sonoras. Como é, então, que
pode se falar de uma fonética e de uma fonologia de línguas de sinais?”
Pois é. À primeira vista, isso parece um pouco estranho. O que
acontece é que os termos fonética e fonologia foram criados a partir dos
primeiros estudos feitos sobre as línguas orais. Como, nessas línguas, os
significantes dos signos são, de maneira geral, representações mentais de
sons, a área que estuda a substância ou massa amorfa de onde vêm esses
significantes, e a área que estuda os próprios significantes, receberam um
nome formado a partir da raiz grega fon, que significa som.
No caso das línguas de sinais, William Stokoe tentou chamar o estudo
dos significantes dos sinais de quirologia, que é uma palavra formada a partir
da raiz grega quir, que significa mão. Entretanto, esse nome não “pegou”, ou
seja, a comunidade de lingüistas que estudam as línguas de sinais, tanto
surdos quanto ouvintes, continua a usar os termos fonética e fonologia para
tratar dos significantes das línguas de sinais.
--“Será que isso não tem importância?”, vocês podem me perguntar.
Não, mas só se ficar muito claro que a fonética estuda uma substância
que é constituída de sons e gestos, e que a fonologia estuda significantes que
são representações mentais acústicas e óticas. De maneira geral, esse é o
entendimento que se tem hoje no âmbito dos estudos lingüísticos das línguas
de sinais.
Passemos, agora, a entender melhor do que trata a fonética. A fonética
tem por objetivo o estudo das características físicas dos sons das línguas orais
e dos gestos corporais das línguas de sinais. Em outras palavras, a fonética se
interessa pela caracterização dos sons e dos gestos, em seus aspectos
articulatórios e acústicos/óticos. Vejam que a fonética tem a preocupação de
descrever e analisar a massa amorfa fônica/gestual, ou seja, os sons/gestos
das línguas, independentemente do valor que eles têm dentro de uma língua
particular. Primeiramente, vamos tratar de algumas questões com que a
fonética trabalha na análise das línguas orais. Do ponto de vista articulatório,
ou seja, do ponto de vista da maneira como os sons das línguas orais são
produzidos, uma questão central da fonética é entender o funcionamento do
sistema respiratório da produção dos sons. A produção dos sons da fala
sempre envolve o movimento de uma corrente de ar. A maioria dos sons das
línguas orais é produzida pela expulsão do ar dos pulmões, pela boca ou pelo
nariz. Esses sons são chamados egressivos. Algumas poucas línguas
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
47
produzem sons quando a corrente de ar entra no pulmão. Esses sons são
chamados ingressivos. O português não faz uso de sons ingressivos.
Na passagem do ar pela glote, que é uma parte de nossa faringe, as
nossas cordas vocais podem ou não vibrar. Se as cordas estão separadas, o
ar passa livremente por elas, não causando nenhuma vibração. Nesse caso,
os sons produzidos são chamados desvozeados. Por outro lado, se as cordas
vocais estão próximas umas das outras, quando o ar passa por elas, elas
vibram. Nesse caso, os sons produzidos são chamados vozeados. Por
exemplo, vamos pensar nos sons [p], [t], [k], do português, como no início das
palavras pato, teto e casa. Esses sons são produzidos sem a vibração das
cordas vocais. Se pusermos nossa mão sobre nossa garganta enquanto
produzimos esses sons, vamos sentir que nossas cordas não estão se
movendo. Agora, vamos contrastar esses sons com os sons [b], [d], [g], como
no início das palavras bode, dado e gato. Colocando nossa mão sobre nossa
garganta enquanto produzimos esses sons, sentimos que nossas cordas estão
vibrando. Façam o mesmo teste com os sons [s], como no início da palavra
sapo, e [z], como no início da palavra zebra. Vocês vão perceber que, para
produzir [s], não vibramos nossas cordas vocais, mas para produzir [z], elas
precisam vibrar. Desse modo, o [s] é considerado um som desvozeado,
enquanto o [z] é considerado um som vozeado. Se vocês não puderem
produzir esses sons, peçam para um colega falante de português produzi-los e
coloquem a mão sobre a garganta dele para vocês poderem sentir o
vozeamento ou o não-vozeamento de certos sons do português. Mas atenção!
Quando vocês forem fazer isso, tentem pronunciar só os sons mencionados
acima, sem que eles tenham o apoio de uma vogal, ou seja, não vale dizer [pe],
[te], [ke], [se]. Sabem por que? Porque as vogais são sempre vozeadas, ou
seja, sua produção sempre envolve a vibração das cordas vocais. Existe um
grande número de vogais nas línguas orais. O português tem as seguintes
vogais: [ ], como em ato; [ ], como em estranho; [ ], como em ela; [ ],
como em isto; [o], como em ostra; [ ], como em ópera, e [ ], como em uva.
Essas vogais têm articulações um pouco diferentes quando são produzidas
com a liberação da corrente de ar pelo nariz. Nesses casos, temos as vogais
nasais, como o som final da palavra anã, ou os dois últimos sons da palavra
pão ou põe. As vogais do português também têm uma articulação diferente se
elas são átonas, ou seja, se elas não são as vogais sobre as quais está o
acento da palavra. Por exemplo, em uma palavra como esta, de uma
expressão como esta cadeira, o acento recai sobre a primeira sílaba da
palavra, ou seja [es]. Em uma palavra como está, 3a pessoa do singular do
presente do verbo estar, o acento recai sobre a última sílaba da palavra, ou
seja [ta]. A vogal final da palavra esta e da palavra está são articulatoriamente
diferentes, na medida em que a primeira não é acentuada, e a segunda é.
Neste momento, vocês podem estar querendo fazer a seguinte pergunta:
--“Por que é que os sons das línguas orais são divididos em dois grupos,
um de consoantes, outro de vogais?”
Na realidade, consoantes e vogais não devem ser entendidas como dois
grupos de sons totalmente separados e autônomos. O que acontece é que, no
que diz respeito à passagem do ar, os sons podem ser organizados em um
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
48
contínuo, que vai dos sons produzidos com uma grande obstrução da
passagem de ar, até aqueles que são produzidos com uma passagem mais
livre do ar. As consoantes são os sons produzidos com maior obstrução; as
vogais são os sons produzidos com uma menor obstrução. Assim, por
exemplo, [p], [b], [t], [d], [k], [g] são sons produzidos com o mais alto grau de
obstrução na passagem do ar; as vogais [a], [e], [ ], [ ], [o] são sons
produzidos com pouquíssima obstrução da passagem de ar. Entre esses dois
grupos, existe uma gradação entre os sons, relativamente à obstrução da
passagem do ar. Daqueles que são tradicionalmente considerados
consoantes, o [l], de uma palavra como lobo, e o [r] (e todas as suas variantes
regionais), como na palavra roda, são os sons que são produzidos com o
menor grau de obstrução. Dentre as vogais, o [i] e o [u] são as que sofrem a
maior obstrução.
Outra pergunta que vocês podem estar com vontade de fazer é a
seguinte:
--“Todos os sons nasais são vogais?”
Não. Existem várias consoantes nasais. Em português, nós temos três:
o [m], como em moda; o [n], como em nadar; e o som nasal palatal [ ],
normalmente grafado com -nh, que aparece no início da segunda sílaba da
palavra senha.
E, agora, vocês devem estar curiosos para saber o que é um som
palatal, não estão? Nós já tínhamos falado de sons palatais quando
estávamos estudando a teoria de Saussure e tratamos de mudanças na língua.
O que acontece é o seguinte. Toda consoante é caracterizada não só por suas
qualidades de vozeamento ou não-vozeamento, e por ser oral ou nasal. Elas
também são caracterizadas pelo ponto de articulação e pelo modo de
articulação. As consoantes [p], [b], [m], por exemplo, são articuladas com o
fechamento dos lábios. Por isso, elas são chamadas bilabiais. Os lábios são,
então, o ponto de articulação dessas consoantes. No que diz respeito ao modo
de articulação, elas são oclusivas ou plosivas. Sons oclusivos ou plosivos são
aqueles que são produzidos com a obstrução completa da passagem de ar.
Um som como o [ ], da palavra senha, ou como [l], da palavra palha, são
articulados quando o centro da língua sobe e encosta no céu-da-boca, ou
palato. Por isso, são chamados de sons palatais.
Quando vocês fizerem a disciplina intitulada Fonética e Fonologia, vocês
vão estudar todos os pontos e modos de articulação das consoantes e vogais.
Por isso, não vou avançar mais sobre esse assunto, neste momento.
Vamos, agora, voltar para aquela idéia de que o signo lingüístico é como
uma moeda que tem duas faces: o significante e o significado. Nós vimos que
significante e significado se constituem a partir de duas grandes massas
amorfas: a massa amorfa fônica/gestual, e a massa amorfa do pensamento.
No início deste ponto, vimos que a fonética é a área da lingüística que se
ocupa da descrição e análise da massa amorfa fônica ou gestual. E a
fonologia é a área de lingüística que se ocupa da descrição e análise dos
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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significantes de cada língua, ou seja, da porção que cada língua formatou a
partir da massa amorfa fônica ou gestual.
Na fonética, nós estudamos os sons e os gestos das línguas humanas
em seus aspectos físicos. Na fonologia, nós estudamos o caráter propriamente
lingüístico desses sons ou gestos. Isso significa que, ao estudarmos fonologia,
passamos a analisar os sons ou gestos em termos das relações que eles
estabelecem entre si, e dos valores que eles têm dentro de um determinado
sistema lingüístico. Nós vimos que, em português, nós temos os sons [p], [b],
[t], [d], [k], [g]. Mas nós ainda não sabemos como funcionam esses sons no
sistema do português. Nós não sabemos se, na língua portuguesa, eles têm
algum valor, no sentido saussuriano. Um som tem valor no sistema de uma
língua se ele é capaz de distinguir significados. Se trocarmos um som por
outro dentro de um mesmo contexto e se, com isso, mudarmos o significado de
um signo, vamos estar diante de um som que tem valor lingüístico. Esse som
que tem valor lingüístico se chama fonema. Em português, os sons [p], [b], [t],
[d], [k], [g] são fonemas. Ou seja, todos eles são capazes de distinguir
significados. Tomemos, por exemplo, um signo como pata. Se substituirmos o
fonema /p/ por /b/, obteremos o signo bata. Se o substituirmos por /d/,
obteremos data. Se o substituirmos por /k/, obteremos cata (do verbo catar).
Se o substituirmos por /g/, obteremos gata.
Esses sons que são fonemas em português podem não ser fonemas em
outras línguas. Existe uma língua falada no Peru, em que a palavra que
significa ar pode variar entre as formas [tampia] e [tambia]. Ou seja, se alguém
pronunciar essa palavra com o som [p] ou com o som [b] não vai causar uma
distinção de significado. A palavra que significa feijão pode ser pronunciada
com as formas [mat agi] ou [mat aki], sem que haja distinção de significado.
Se não houver, nessa língua, nenhum contexto em que [p] e [b] ou [k] e [g]
distingam significados, vamos dizer que os pares [p]/[b] e [k]/[g] não constituem
fonemas distintos.
Vamos ver agora um exemplo que compara o português brasileiro com o
inglês. Em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades do sudeste do
país, palavras como tia e dia são pronunciadas como “tchia” e “djia”. Na grafia
fonética, grafamos a pronúncia dessas duas palavras assim: [t i    ] e [d
i    ].
Será que os sons [t ] e [d
] são fonemas, em português? Não, não são, na
medida em que não distinguem significado. Se pronunciarmos a palavra tiete
como [t i t ], ou como [ti t ], não vamos obter dois signos diferentes. Da
mesma maneira, se pronunciarmos a palavra dividir como [d
v d
i ] ou
como [d v di ], não vamos obter signos diferentes. Em inglês, a situação é
outra. Os sons /t/ e /t / distinguem significados: [tin] (tin), por exemplo,
significa lata; e [t in] (chin) significa queixo. Os sons /d/ e /d
/ também
distinguem significados: [diyp] (deep) significa profundo, e [d
iyp] (jeep)
significa jipe. Portanto, em inglês, /t/ e /t / são fonemas distintos, da mesma
maneira que /d/ e /d
/ são fonemas distintos. Em português, [t] e [t ] são
alofones do fonema /t/. Ou seja, eles são duas possibilidades diferentes de
realização fonética do fonema /t/. Da mesma maneira [d] e [d
] são alofones
do fonema /d/. Ou seja, eles são duas formas diferentes de realização fonética
do fonema /d/.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
50
No caso desses alofones do português, dizemos que eles estão em
distribuição complementar. O que significa isso? Significa que um dos
alofones aparece em um contexto específico, e o outro alofone aparece nos
demais contextos. Vejam que [t ] e [d
] só aparecem diante de /i/; na frente
de todos os outros sons do português, mesmo nos dialetos da região sudeste,
usamos os alofones [t] e [d]. Mas, atenção. Nem todos os alofones estão em
distribuição complementar. As línguas têm alofones que dizemos que estão
em variação livre. Assim, por exemplo, uma palavra como mar pode ter seu
som final pronunciado de várias maneiras: como o som retroflexo [
], como
fazem os caipiras; como o som [ ], como fazem os cariocas; como o som [r],
como fazem os paulistanos. Como vocês vêem, apesar de esses alofones
estarem em variação livre de um ponto de vista estritamente fonológico, de um
ponto de vista sociolingüístico, dizemos que esses alofones são exemplos de
variações regionais.
Todos esses assuntos vão ser vistos em mais detalhes quando vocês
avançarem seus estudos de lingüística ao longo do curso. Vamos fazer agora
um panorama da fonética e da fonologia das línguas de sinais.
A fonética-fonologia das línguas de sinais opera em dois eixos: um de
linearidade, outro de simultaneidade. No eixo da linearidade, há seqüências de
suspensões e movimentos. Suspensões ocorrem quando os sinais, ou partes
deles, são realizados com a(s) mão(s) parada(s). Se vocês pensarem em um
sinal como TRISTE, vocês têm um exemplo de um sinal que corresponde a
uma suspensão. Movimentos ocorrem quando os sinais, ou partes deles, são
realizados com a(s) mão(s) em movimento. Um sinal como ANDAR-DOSANIMAIS
é um exemplo de sinal que se constitui apenas de um movimento,
sem nenhuma suspensão. Outros sinais, no entanto, se caracterizam por
apresentarem uma seqüência de movimentos e suspensões. Pensem em um
sinal como EXEMPLO. Nesse sinal, a mão, posicionada à frente do queixo, faz
um pequeno movimento até contactar o queixo. Esse contacto corresponde a
uma suspensão. A seguir, a mão se afasta até a posição inicial, repete o
movimento e faz o contacto com o queixo novamente. Por isso, podemos dizer
que o sinal EXEMPLO constitui-se de quatro segmentos: um movimento, uma
suspensão, outro movimento e outra suspensão.
No eixo vertical, cada segmento do tipo suspensão ou do tipo movimento
vai ser descrito por uma série de traços que ocorrem simultaneamente. Esses
traços se organizam em feixes. Se o sinal é realizado com apenas uma das
mãos, todos os feixes vão se referir às características dessa mão. Se, no
entanto, o sinal é realizado com duas mãos, vai haver feixes de traços dos
movimentos e das suspensões para cada uma das mãos. Um desses feixes, o
articulatório, compreende traços que caracterizam a configuração da mão, a
orientação da palma, o local onde o sinal é realizado, se há ou não contacto
com alguma parte do corpo. O feixe articulatório é importante para descrever
tanto as suspensões, quanto os movimentos. Mas, quando um movimento
acontece entre duas suspensões, ele “herda” alguns dos traços das
suspensões. Vamos pensar em um sinal como BOM, por exemplo. Na língua
de sinais brasileira, esse sinal se realiza com uma seqüência de suspensão,
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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movimento e suspensão. Na suspensão inicial, a mão encontra-se diante da
boca do sinalizador, em uma configuração em O, com a palma voltada para
dentro. A seguir, verifica-se um movimento pelo qual a mão se abre e assume
a configuração em 5. Quando a mão assume essa configuração, verifica-se
uma outra suspensão. Vejam o que acontece com o movimento desse sinal.
Ele herda, das duas suspensões, a orientação da palma e a localização. Da
primeira suspensão, ele herda a configuração da mão em O; da segunda
suspensão, ele herda a configuração da mão em 5.
Outros traços que ocorrem simultaneamente a movimentos e
suspensões são os traços não-manuais que são necessários para a boa
formação de vários sinais. Ou seja, as línguas de sinais têm um conjunto não
muito grande de sinais que se realizam não só com as mãos, mas também com
configurações da face, ou, às vezes, de outras partes do corpo. O sinal
GORD@, por exemplo, é realizado não só por meio do posicionamento dos
braços na altura do abdômen e pelo movimento da mão dominante configurada
em Y ao longo do braço não-dominante, mas também pelo inflar das
bochechas, que se mantém ao longo de todo o movimento da mão.
Mas, atenção. Aqui estamos tratando apenas de marcas não-manuais
que dizem respeito à realização de certos sinais. Existem marcas não-manuais
que não são traços fonético-fonológicos dos sinais, mas sim marcas sintáticas.
Nós vamos tratar disso mais adiante, quando fizermos um panorama do que é
sintaxe.
Os movimentos e suspensões, por meio dos traços que os compõem,
podem ser distintivos de significado. Ou seja, seguindo o modelo de Saussure,
podemos dizer que eles têm valor dentro do sistema. Nesse caso, dizemos
que eles têm estatuto fonológico, o seja, eles se comportam como os fonemas
das línguas orais. Comparem os sinais APRENDER e SÁBADO da língua de
sinais brasileira. Eles têm quase todas as características iguais, mas
diferenciam-se pelo traço relacionado ao local em que cada um deles se
realiza: APRENDER é sinalizado na altura da testa e SÁBADO é sinalizado na
altura da boca. Agora, comparem o sinal de FRANÇA, com o sinal de
FACULDADE. Ambos se realizam no mesmo local e têm a mesma
configuração de mão em F. Mas eles se distiguem no que diz respeito à
caracterização dos movimentos que realizam: enquanto FRANÇA se
caracteriza por uma seqüência de um movimento curto da mão para fora e de
uma suspensão, FACULDADE se caracteriza por ser uma suspensão em que a
mão faz movimentos locais circulares para dentro.
Comparem, ainda, os sinais de CONHECER e EXEMPLO. Como nos
outros casos, eles têm muitos traços em comum: ambos se realizam por um
pequeno movimento e por um contacto no queixo, que se repetem. A
orientação da palma também é a mesma nos dois sinais, mas eles se
diferenciam pela configuração de mão: em CONHECER, a configuração de
mão é em B, e, em EXEMPLO, a configuração é em Y. Agora, vejam como os
sinais não-manuais também podem ser distintivos de significado. Comparem
os sinais EXEMPLO e FICAR (no sentido de namorar alguém em uma festa).
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
52
A única diferença entre eles está no fato de que FICAR tem uma marca nãomanual
que se realiza com os dentes superiores tocando o lábio inferior.
Vejam então que, tanto quanto nas línguas orais, os significantes
lingüísticos nas línguas de sinais têm elementos mínimos que distinguem
significado, formando pares como os apresentados acima. Esses pares são
chamados pares mínimos, e são sempre usados justamente para exemplificar
essas unidades que distinguem significados. Também, da mesma maneira que
nas línguas orais, o significante das línguas de sinais se organiza linearmente e
simultaneamente. Nas línguas orais, os fonemas formam uma seqüência
linear, e cada fonema é formado de um conjunto de traços simultâneos, como
ser consonantal ou ser vocálico, ser vozeado ou desvozeado, ser nasal ou não,
ser oclusivo ou não, etc. Nas línguas de sinais, os segmentos também se
organizam linearmente, e cada um deles é formado de um conjunto de traços
simultâneos, como ser suspensão ou movimento, ser realizado com uma ou
duas mãos, ter marcas não manuais, ter contacto com o corpo ou não, ser
realizado com esta ou aquela configuração de mão, etc.
Vocês devem estar querendo fazer a seguinte pergunta:
--“Será que as línguas de sinais têm alofones?”
Sim, como todas as demais línguas naturais. Um exemplo de alofonia
da língua de sinais brasileira está relacionado às várias possíveis realizações
de um sinal como ENTENDER: é possível realizá-lo com ou sem contacto com
a lateral da testa; quando não há contacto, é possível realizá-lo ou na altura da
lateral da testa, ou da lateral dos olhos, ou mesmo na altura da bochecha.
Nenhuma dessas alterações de realização causa mudança de significado. Por
isso, podemos considerar um caso desses como um exemplo de alofonia.
Mas, vamos parar por aqui. Vocês vão ter um curso inteiro sobre fonética e
fonologia de línguas orais e de sinais, e vão aprender muito mais do que essa
pequena amostra que nós estamos vendo aqui. Passemos a ver o que é a
morfologia das línguas naturais.
4.2 Morfologia
Tradicionalmente, diz-se que a morfologia é a área da lingüística que
estuda a palavra. Em geral, de maneira intuitiva, todos nós sabemos o que é
uma palavra em nossa língua. Mas, às vezes, encontramos alguns casos a
respeito dos quais não temos certeza. Nós já vimos alguns exemplos disso no
início de nosso curso. Será que,quando usamos a expressão pastor alemão
para fazer referência a uma raça de cachorro, temos uma palavra ou duas? E
as expressões cão de guarda, cão de trabalho, cão de companhia? Será que
elas são, cada uma, uma única palavra, ou será que cada uma é formada de
três palavras? Como vimos no início do curso, quando usamos adjetivos para
qualificar expressões como essas, tendemos a colocá-los no final, e não no
meio, da expressão, como mostram os exemplos abaixo:
(30) Eu tenho um pastor alemão maravilhoso.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
53
(31) *Eu tenho um pastor maravilhoso alemão.
(32) Pedro encontrou um cão de guarda machucado.
(33) *Pedro encontrou um cão machucado de guarda.
Mas, em alguns casos, a situação não é tão clara. Considerem, por
exemplo, o caso da expressão língua de sinais. Nós podemos entender que a
expressão língua de sinais é uma única palavra, e qualificá-la de brasileira,
americana, australiana. Nesse caso, nós chamamos a língua de sinais dos
surdos brasileiros de língua de sinais brasileira. Ou então, nós podemos
entender que a expressão língua de sinais é formada de três palavras
diferentes. Nesse caso, podemos colocar os adjetivos brasileira, americana,
australiana logo depois da palavra língua, obtendo língua brasileira de sinais,
língua americana de sinais, língua australiana de sinais.
A definição técnica do que é uma palavra fica ainda mais difícil quando
consideramos algumas línguas que são chamadas polissintéticas. Essas
línguas têm uma propriedade interessante, que é a de construir uma única
palavra para aquilo que, em português, seria uma sentença. Assim, em
kadiwéu, que é uma língua indígena brasileira, jotagangetagadomitiwaji parece
ser uma palavra, mas, em português, equivale a uma sentença como eu falo
com eles por vocês.
E como é a situação nas línguas de sinais? Será que um sinal que
equivale a MELÃO em português é uma única palavra, ou será que se trata de
duas palavras, que poderiam ser traduzidas por OBJETO-REDONDO e
AMARELO? E o sinal que corresponde a BERINJELA? É difícil dizer.
Normalmente, é preciso aplicar critérios sintáticos, semânticos e fonológicos
para sabermos, com alguma precisão, se uma determinada expressão
lingüística é ou não uma palavra. Mas, mesmo assim, como já dito, nem
sempre podemos ter certeza absoluta. Nas línguas de sinais, a solução para
esse problema está ainda mais longe, na medida em que os estudos
lingüísticos sobre elas ainda estão no começo. Mas, nada impede que nós
comecemos, desde já, a pensar sobre o assunto, não é?
Nosso objetivo, aqui neste curso, é o de dar uma visão geral e
tradicional do que é morfologia. Então, vamos falar de noções um pouco
menos controversas. Como a definição de palavra é uma questão muito
complexa, podemos nos concentrar na noção de morfema. Morfema é o menor
signo lingüístico, ou seja, uma função que une um significante a um significado.
Lembrem-se de que nós vimos que fonema é a menor unidade lingüística que
distingue significados. Mas, o fonema, ele mesmo, não tem significado. O
morfema, por outro lado, é a menor unidade lingüística, que tem, ao mesmo
tempo, significante e significado. Uma palavra do português como parede, por
exemplo, é um morfema. Ela não pode ser dividida em signos menores. Ou
seja, ela não pode ser dividida em unidades menores, que tenham significante
e significado. Já uma palavra como jardineiro é composta por três morfemas:
jardin-, -eir-, e -o. Cada um desses morfemas é um signo diferente, com um
significante e um significado: jardin- significa um local em que crescem plantas
e flores; -eir- significa, entre outras coisas, alguém que trabalha com um
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
54
determinado objeto ou mercadoria; e -o é o morfema que significa o gênero
masculino. Muitas outras palavras do português são formadas de maneira
semelhante: jornaleiro, açougueiro, verdureiro, etc. Vejam como esse tipo de
formação é recorrente na língua portuguesa. Há alguns anos, nós todos
passamos a ter a necessidade de um profissional especializado em
computadores, tanto para montar, consertar e configurar nossas máquinas,
como para desenvolver programas e construir sites. Não existia uma palavra
em português para designar esse profissional. Imediatamente, os falantes do
português criaram a palavra computeiro, que significa aquele que trabalha com
computadores.
Uma definição já clássica de morfema é a de que ele é um signo
recorrente, que não pode ser analisado em signos recorrentes menores.
Tomemos, como exemplo, um outro morfema do português, como -or para ver
como eles são recorrentes, ou seja, como eles se repetem na formação de
várias palavras. O morfema -or tem seu significado associado a pessoas que
realizam uma certa atividade. Com ele, são formadas palavras como
trabalhador, jogador, cantor, ator, pintor. Um outro morfema do português é i-,
cujo significado é associado à negação. Com ele, formamos palavras como
imoral, ilegal, irracional, ilógico, irreal, etc.
Como é que podemos diferenciar morfemas como parede, de morfemas
como os do tipo de -eir-, -o, i-, -or? Os primeiros, como parede, mesa, sapato,
camisa e muitos outros, são chamados morfemas livres. Os morfemas livres
não precisam de outros morfemas para constituir uma palavra. Aqueles como -
eir-, -o, i-, -or, dentre muitos outros, são chamados morfemas presos. Os
morfemas presos não podem, sozinhos, constituir uma palavra. Eles precisam
sempre se juntar a outros morfemas para formar uma palavra. Em português,
os morfemas presos podem ser de dois tipos: os prefixos e os sufixos. Os
prefixos são os morfemas presos que se colocam na frente de um outro
morfema. Exemplos de prefixo do português são i-, como em ilegal; a-, como
em amoral; des-, como em desfazer; anti-, como em antidepressivo; super-,
como em supermercado. Sufixos são os morfemas presos que se colocam no
fim de um outro morfema, como -or, em investidor; -ista, como em motorista; -
ismo, como em socialismo; -(i)dade, como em irmandade, comunidade. Os
morfemas aos quais são afixados os prefixos e os sufixos são chamados raiz.
Assim, nos exemplos dados, legal, moral, fazer, motor, etc. são raízes.
Os sufixos de uma língua como o português são de dois tipos:
derivacionais e flexionais. Os derivacionais são chamados assim porque eles
ajudam a formar uma nova palavra. Com exceção do sufixo -o, do gênero
masculino, todos os sufixos que vimos acima são derivacionais. Os sufixos -o,
-a, que estabelecem o gênero masculino ou feminino são sufixos flexionais.
Também são flexionais o sufixo -s de plural, e todos os sufixos das
conjugações verbais que estabelecem o tempo, a pessoa e o número das
formas verbais. Assim, por exemplo, se tomarmos o par menin-o/menin-a,
vemos que eles se diferenciam pela flexão de gênero: o primeiro está no
gênero masculino e o segundo está no gênero feminino. Se tomarmos o par
carro/carro-s, veremos que eles se diferenciam pela flexão de número: o
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
55
primeiro está no singular e o segundo está no plural. Agora, tomemos a
conjugação de um verbo como cantar, como mostra a tabela abaixo:
pronome raiz morfema de
tempo/modo/aspecto
morfema de
número de
pessoa
eu cant- -ava- Æ
tu cant- -ava- -s
ele/ela cant- -ava- Æ
nós cant- -ava- -mos
vós cant- -av(a)- -eis
eles/elas cant- -ava- -m
Vejam que a raiz é sempre a mesma, cant-. O morfema de tempo,
modo, aspecto, -ava-, também é sempre igual para toda a conjugação e indica
que se trata do pretérito imperfeito do indicativo. Notem que, na conjugação da
segunda pessoa do plural (vós), o fonema /a/ final vai desaparecer quando o
sufixo -ava- se juntar ao sufixo -eis. Os morfemas de número e pessoa indicam
se a pessoa que cantava era a primeira do singular (eu), a segunda do singular
(tu), a terceira do singular (ele/ela), e assim por diante. Notem que a primeira e
a terceira do singular são iguais, e se caracterizam pela ausência de um
morfema. Todas as demais têm um morfema diferente. Vejam que, em uma
língua como o português, há uma redundância quando dizemos algo como em
(34):
(34) Nós cantávamos muito bem.
A redundância está no fato de mencionarmos a primeira pessoa do
plural duas vezes, uma no pronome nós, outro no sufixo -mos do verbo.
Mas vocês devem estar querendo pedir o seguinte esclarecimento:
--“Afinal, como é que podemos saber se um morfema é derivacional ou
flexional?”
Basicamente, está no fato de que os derivacionais criam novas palavras,
enquanto os flexionais indicam relações gramaticais, como masculino/feminino,
singular/plural, tempo verbal, concordância de pessoa e número.
Será que as línguas de sinais têm uma morfologia semelhante à das
línguas como o português? Pelo que se sabe, até o momento atual, as línguas
de sinais parecem ter um comportamento morfológico bastante diferente
daquele de uma língua como o português, mas não totalmente diferente
daquele apresentado por outras línguas orais. Por exemplo, as línguas de
sinais, pelo menos as que já têm sido mais bem estudadas, não parecem ter
morfemas flexionais de tempo para os verbos, nem morfemas flexionais de
gênero ou número para os substantivos e adjetivos. Alguns autores pensam
que os verbos direcionais das línguas de sinais apresentam flexão de pessoa.
Para esses autores, a direcionalidade desses verbos, apontando as pessoas
que realizam a ação e que sofrem a ação do verbo seria um tipo de morfema
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
56
de concordância de pessoa. Outros autores, no entanto, dizem que a
direcionalidade desse tipo de verbo não é uma característica morfológica deles,
mas uma propriedade que eles têm, como os pronomes, de apontar
diretamente para as pessoas que estão envolvidas em uma conversação ou
em um discurso.
No que diz respeito aos morfemas derivacionais, na ASL, foram
encontrados alguns poucos exemplos de prefixação e sufixação. Na língua de
sinais brasileira, um dos poucos exemplos de derivação que se pode dar com
certeza é a incorporação de numeral. Assim, sinais como UMA-HORA, DUASHORA,
TRÊS-HORA, QUATRO-HORA, ou como UMA-SEMANA, DUASSEMANA,
etc. podem ser considerados morfologicamente complexos, na
medida em que são formados de um morfema, que é o numeral, e de outro
morfema, que significa hora, semana, mês, etc. Mesmo assim, não se pode
dizer que se trata de prefixação ou sufixação, na medida em que os morfemas
ocorrem simultaneamente.
Um outro processo morfológico que se verifica em algumas línguas orais
e que também acontece nas línguas de sinais é a reduplicação. Um exemplo
de reduplicação na língua de sinais brasileira se verifica pela repetição do sinal
correspondente a DIA, para significar TODO-DIA.
Fora esses processos, o que se tem observado é que, de maneira geral,
para criar novos sinais, as línguas de sinais se valem de um processo chamado
de composição. A literatura sobre a ASL diz que essa língua contém um
grande número de sinais compostos. Ao que parece, o mesmo acontece na
língua de sinais brasileira. Sinais como ESCOLA, IGREJA, entre outros tantos,
parecem ser sinais compostos. Entretanto, só mais estudos sobre morfologia e
composição é que vão poder nos dar informações a respeito das
características morfológicas dessas línguas. Quando vocês cursarem a
disciplina intitulada Morfologia, vocês vão ver muitos exemplos mais, tanto de
português quanto de língua de sinais, o que vai ajudar a deixar esses conceitos
mais claros para vocês.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
57
Unidade 5:
Lingüística geral: Sintaxe, Semântica e Pragmática
5.1 Sintaxe
A sintaxe é a área da gramática que trata da estrutura da sentença.
Como já dissemos várias vezes ao longo deste curso, a língua é uma relação
simbólica que se estabelece entre duas massas amorfas: a do pensamento e a
dos sons/gestos. Essa relação simbólica constrói signos. Os menores signos
são os morfemas. Como nós acabamos de ver, os morfemas nos ajudam a
construir novas palavras, que também são signos. A combinação de palavras
pode criar também signos maiores, que são as sentenças.
Uma idéia que é fundamental para se começar a lidar com a estrutura
das sentenças diz respeito à distinção que existe entre unidades lingüísticas
que são autônomas, e unidades lingüísticas que são dependentes. São
autônomas aquelas unidades lingüísticas que se bastam a si mesmas, sem
precisar de outras unidades que ajudem a completar a conceitualização
iniciada por elas. Por outro lado, unidades dependentes são aquelas que
necessariamente precisam se combinar com outras unidades lingüísticas para
criar uma conceitualização.
É importante fazer uma observação neste momento. Provavelmente,
não existem unidades lingüísticas que sejam totalmente autônomas do ponto
de vista conceitual. Isto se deve ao fato de que todo conceito expresso pelas
unidades lingüísticas está encaixado dentro de outros conceitos e estabelece
uma vasta rede de relações com muitos outros conceitos. Mesmo assim, não é
difícil perceber que existe uma gradação de autonomia entre diversas unidades
lingüísticas. Comparemos, por exemplo, expressões nominais (substantivos),
de um lado, e verbos, de outro. De maneira geral, as expressões nominais são
relativamente autônomas, enquanto verbos, de maneira geral, são bastante
dependentes.
Pensemos no substantivo do português “mesa”. Todos os que
conhecem a língua portuguesa entendem o conceito de mesa. Podemos não
saber de que tipo de mesa se trata, se é grande ou pequena, se é de madeira,
de vidro ou de plástico, se é de brinquedo ou de verdade. Mas, sem dúvida,
sabemos o que é uma mesa. Agora, pensemos no verbo pôr, do português.
Esse verbo expressa uma relação entre alguém que causa o movimento de um
determinado objeto até um determinado local. Se não expressarmos
lingüisticamente esses elementos envolvidos na relação designada pelo verbo
pôr, não vamos ser capazes de conceitualizar um evento de “pôr”. Comparem
os exemplos abaixo:
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
58
(35) O João pôs os livros na estante.
(36) *O João pôs na estante.
(37) *O João pôs os livros.
(38) *O João pôs.
(39) *Pôs os livros na estante.
(40) *Pôs os livros.
(41) *Pôs na estante.
(42) *Pôs.
Vejam que a única sentença que expressa uma conceitualização
completa é a sentença (35). Nela, todos os participantes da relação designada
pelo verbo pôr estão lingüisticamente expressos. Em todos os demais
exemplos, um ou mais participantes da relação não estão expressos. Em
conseqüência, as sentenças não nos ajudam a formar uma conceitualização
completa de um evento de “pôr”. Por isso, essas sentenças são mal formadas.
Vocês poderiam fazer a seguinte objeção:
--“Você está dizendo que essas sentenças são mal formadas, mas, em
alguns casos, várias delas são usadas por falantes do português. Por
exemplo, se alguém pergunta para você se o João já pôs os livros na estante,
você reponde, simplesmente, com uma sentença como (42), ´Pôs´. Se essa
sentença é mal formada, como é que um falante de português pode usá-la
assim, tão naturalmente?”
Essa é uma ótima observação! De fato, vocês têm razão. Algumas
dessas sentenças podem ser usadas em um contexto apropriado. Assim, se
alguém me perguntar onde estão os livros, eu posso dar uma resposta como
(36). O que eu estou querendo dizer quando digo que as sentenças entre (36)
e (42) são mal formadas é que elas não podem aparecer no início de um
discurso, sem que haja um contexto que possa nos ajudar a suprir as
informações que não estão lingüisticamente expressas em sua estrutura.
Diferentemente, a sentença (35) pode ser a primeira sentença de um discurso
sem nenhum problema. Para entendê-la, nós não precisamos buscar
informações em falas precedentes.
Voltemos à questão da dependência. Todas as expressões lingüísticas
que designam uma relação são dependentes. Verbos e preposições são
tipicamente relacionais. Essa dependência é decorrente do fato de elas
designarem relações. Para que possamos conceitualizar uma determinada
relação, é necessário que saibamos o quê está relacionado com o quê. Para
ilustrar essa questão mais uma vez, tomemos agora o exemplo da preposição
sobre. Essa proposição designa uma relação particular entre dois objetos,
como na expressão abaixo:
(43) o livro sobre a mesa
Podemos, então, dizer que itens que designam relações, como verbos e
preposições, têm uma estrutura que prevê que outros itens lingüísticos
precisam se combinar com eles, para que possamos construir um conceito
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
59
completo da relação que eles designam. Essa característica dos itens
relacionais pode ser chamada de valência ou estrutura argumental. Ela
determina as possibilidades combinatórias de uma determinada expressão
lingüística.
É justamente a valência que está na base da distinção que as
gramáticas das línguas orais fazem entre verbos intransitivos, verbos
transitivos (diretos e indiretos) e verbos ditransitivos (também chamados de
transitivos direto e indireto, ou bitransitivos). Um verbo intransitivo, como sorrir,
por exemplo, pode se combinar com apenas um outro elemento para construir
um conceito completo. Na sentença abaixo, esse outro elemento é realizado
pelo sintagma o bebê:
(44) O bebê sorriu.
Verbos transitivos, como construir, precisam se combinar com (pelo
menos) dois outros elementos para que possamos conceitualizar o evento que
ele designa. Em (45), esses dois elementos são realizados pelos sintagmas o
Pedro e esta casa:
(45) O Pedro construiu esta casa.
Um verbo ditransitivo, como pôr ou como dar, precisa de (pelo menos)
três outros elementos para que possa construir o conceito do evento a que se
refere. No exemplo abaixo, esses três elementos são realizados pelos
sintagmas a Marta, o bilhete, e o professor:
(46) A Marta deu o bilhete para o professor.
A sintaxe se ocupa, justamente, de estudar as propriedades de
combinação de certas expressões lingüísticas. São essas propriedades que
determinam, em grande parte, a construção e a estruturação das sentenças de
uma determinada língua.
Entretanto, a valência (ou estrutura argumental) dos itens lexicais não é
o único fator que determina a estrutura das sentenças das línguas naturais. De
maneira geral, as línguas colocam à disposição dos falantes, algumas ou várias
possibilidades de ordenação dos itens lexicais, para que as sentenças possam
expressar as mais variadas perspectivas, por meio das quais os falantes
estruturam, em suas mentes, os eventos que eles observam no mundo. O que
eu estou querendo dizer com isso é que cada falante, diante de um mesmo
evento, pode estruturar esse evento em sua mente, de uma maneira diferente.
Em conseqüência disso, as sentenças construídas por cada falante, para
expressar a mesma situação real observada por todos, podem eventualmente
ser diferentes. Como exemplo, imaginemos a seguinte cena: um menino
chamado João está tentando abrir uma porta com uma chave, mas não
consegue. Sua irmã, Marina, empresta a sua chave para ele, e ele finalmente
consegue abrir a porta. Um falante do português pode expressar esse evento
com a seguinte sentença:
(47) O João finalmente abriu a porta com a chave da Marina.
Outro falante, que tenha observado a mesma cena, pode expressá-la do
seguinte modo:
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
60
(48) A porta foi finalmente aberta com a chave da Marina.
Um outro falante poderia optar por descrever a mesma cena com a
seguinte sentença:
(49) A chave da Marina finalmente abriu a porta.
Uma outra opção seria a sentença (50):
(50) A porta finalmente abriu.
Um outro falante poderia simplesmente exclamar:
(51) Abriu a porta finalmente!
Uma língua como o português brasileiro aceita muitas outras
possibilidades de construções para expressar um evento como o descrito
acima. Confiram os seguintes exemplos:
(52) A porta, o João finalmente abriu com a chave da Marina.
(53) A chave da Marina, o João finalmente abriu a porta com ela.
(54) A Marina, o João finalmente abriu a porta com a chave dela.
(55) O João, ele finalmente abriu a porta com a chave da Marina.
Vejam que, em todas essas sentenças, é sempre o verbo abrir que está
sendo usado. Sua valência, ou seja, suas propriedades combinatórias são
satisfeitas: o verbo abrir é um verbo que exige somente a realização sintática
de uma expressão lingüística que tenha como referente o objeto que sofreu a
ação—no caso, a porta. Mas ele aceita, também, que a sentença tenha uma
expressão que tenha como referente a pessoa que realizou a ação, e até o
instrumento com o qual a ação foi realizada—no caso, o João, e as chaves da
Marina, respectivamente. Como visto, as sentenças entre (47) e (51) refletem
a opção que os falantes do português têm de expressar sintaticamente todos
os participantes da ação de abrir, ou apenas aquele que é exigido pela valência
do verbo. Notem que, quando o participante que realiza a ação do verbo não é
expresso lingüisticamente na sentença, os sintagmas que têm como referente
os demais participantes podem aparecer na posição anterior ao verbo. Com
isso, obtém-se um determinado efeito informacional: de maneira geral, o
constituinte que aparece na primeira posição da sentença é aquele cujo
referente é considerado, pelo falante, como o mais importante do evento.
Notem que, na sentença (51), o falante optou por não expressar
lingüisticamente o participante que realiza a ação de abrir, e também optou por
não realizar, na posição anterior ao verbo, nenhum outro constituinte. Com
isso, o falante mostra que não quer privilegiar nenhum participante do evento:
é o próprio evento de abrir a porta que ele considera a informação mais
importante.
Nas sentenças entre (52) e (55), mesmo quando não há a omissão de
alguns participantes do evento cuja expressão na sintaxe é opcional, existe
uma grande variedade de ordenações de constituintes. Nas sentenças entre
(52) e (55), o participante que realiza a ação de abrir a porta é expresso
lingüisticamente, e aparece em uma posição anterior ao verbo. Mas essa já
não é mais a primeira posição da sentença. Outros constituintes aparecem
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
61
antes: o objeto que foi afetado pela ação do verbo (a porta), em (52); o
instrumento usado para a realização da ação do verbo (a chave da Marina), em
(53); o possuidor do instrumento (a Marina), em (54). Em (55), acontece um
fenômeno interessante, que está se mostrando cada vez mais produtivo no
português brasileiro: o constituinte que corresponde ao participante que realiza
a ação do verbo é reduplicado: o João aparece logo no início da sentença, e,
logo a seguir, o pronome ele, co-referente com João, aparece na posição
imediatamente anterior ao verbo.
Existem, ainda, muitas outras maneiras de os falantes do português
expressarem o mesmo evento em que o João abriu a porta com a chave da
Marina. Vejam as sentenças abaixo:
(56) Foi o João que abriu a porta com a chave da Marina.
(57) Foi a porta que o João abriu com a chave da Marina.
(58) Foi com a chave da Marina que o João abriu a porta.
Essas construções organizam os participantes do evento de maneira a
focalizar um deles. Em (56), o falante focaliza o participante que realizou a
ação do verbo, ou seja, o João. Ele quer dizer que foi o João que abriu a porta,
e não o Pedro, por exemplo. Em (57), o foco recai sobre o objeto afetado pela
ação do verbo, ou seja a porta. O que o falante quer dizer com essa sentença
é que foi a porta que foi aberta, e não a janela, por exemplo. Finalmente, em
(58), o participante da ação que está focalizado é o instrumento, ou seja, a
chave da Marina. Desse modo, o falante quer dizer, por exemplo, que foi com
a chave da Marina, e não com outro instrumento qualquer, que o João
conseguiu abrir a porta.
O estudo da sintaxe das línguas de sinais, tanto quanto o das línguas
orais, é bastante centrado na questão da ordem dos constituintes da sentença.
De maneira geral, como já dito no início do curso, a ASL e a libras têm sido
consideradas línguas SVO, ou seja, línguas que têm, como ordem básica,
aquela em que o sujeito aparece antes do verbo, e os objetos, tanto o direto
quanto o indireto, aparecem depois do verbo. Mas, o fato de a ordem básica
dessas línguas ser SVO não significa que os constituintes não possam
aparecer em outras ordens. O português também é uma língua SVO. Mas,
como vimos nas sentenças acima, os constituintes da sentença podem
aparecer nas mais variadas ordens, desde que marcados com uma entoação
particular.
Nas línguas de sinais, é interessante que as sentenças que mostram
uma alteração da ordem SVO têm um ou mais constituintes acompanhados de
alguma marcação não-manual. Assim, por exemplo, parece ser bastante
comum, tanto na ASL quanto na LSB, termos o objeto afetado pela ação do
verbo na primeira posição da sentença, como abaixo:
(59) _______
LIVRO, MARIA COMPRAR ONTEM.
Para que essa ordem aconteça, o constituinte LIVRO deve vir
acompanhado de um movimento particular da cabeça e de uma certa
configuração das sobrancelhas. Mas, essas e outras questões relacionadas à
sintaxe tanto das línguas orais, quanto das línguas de sinais, vocês vão estudar
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
62
em mais detalhes nos cursos de Sintaxe. Vamos, agora, fazer um panorama
geral do que estudam a Semântica e a Pragmática.
5.2 Semântica e Pragmática
Voltemos a Saussure, mais uma vez. Para ele, a língua é uma relação
simbólica que se estabelece entre duas massas amorfas, a do pensamento e a
dos sons/gestos. A língua formata essas duas massas amorfas, criando, ao
mesmo tempo, um significado e um significante. Significado e significante são
os dois pólos do signo lingüístico. Como vimos no início desta parte do curso,
a fonética e a fonologia são as áreas responsáveis pelo estudo do significante
das línguas naturais. O estudo do significado é feito pela semântica e pela
pragmática.
Saussure diz ainda que a língua é um princípio de classificação. Com
isso, ele quer dizer que a língua ajuda o ser humano a categorizar o mundo, ou
seja, a organizar a realidade de uma certa maneira, agrupando as entidades
em categorias. Para Saussure, uma categoria passa a ter existência à medida
que se cria um nome para ela. Como nós já vimos, alguns povos têm às vezes
dois signos diferentes para expressar o que nós, em português, expressamos
com um signo só. Lembrem-se, por exemplo, de que, enquanto em português
temos apenas o signo porco para nos referir tanto ao animal quanto à sua
carne, em inglês existem dois signos diferentes, um para o animal (pig), outro
para a sua carne (pork). Isso mostra que os povos de língua inglesa organizam
sua realidade de uma maneira diferente da maneira usada pelos povos de
língua portuguesa.
Ao compararmos o português e a língua de sinais brasileira, vemos que
palavras como abandonar, abdicar, largar (entre outras) correspondem a um
único sinal da LSB. O que acontece é que as conceitualizações diferem com
respeito ao nível de detalhe que elas envolvem. Os conceitos de pig e pork do
inglês são mais detalhados do que o conceito de porco do português. Da
mesma maneira, os conceitos de abandonar, abdicar, largar do português são
mais detalhados do que o conceito associado ao sinal que a libras usa como
correspondente a essas palavras do português.
Em uma única língua, os conceitos também variam em relação ao nível
de detalhe que os especifica. Comparemos dois conceitos como [ANIMAL] e
[CACHORRO], por exemplo. É indiscutível que [ANIMAL] é menos detalhado do
que [CACHORRO]. Nós categorizamos muitas entidades como animais:
cachorros são animais, mas gatos também são, cavalos também, macacos,
golfinhos, baleias, lambaris, abelhas, são todos animais. Os conceitos de
[CACHORRO], [CAVALO], [GATO], [GOLFINHO], etc. mantêm uma determinada
relação com o conceito de [ANIMAL]: eles são hipônimos de [ANIMAL]. Por sua
vez, o conceito de [ANIMAL] é o hiperônimo dos conceitos de [CACHORRO],
[CAVALO], [GATO], [GOLFINHO].
Temos também um outro exemplo da relação de hiperonímia/hiponímia
com os conceitos de [FLOR], de um lado, e [ROSA], [MARGARIDA], [CRAVO],
[VIOLETA], [BEGÔNIA], de outro. O conceito de [FLOR] é mais geral, menos
detalhado do que os conceitos de [ROSA], [MARGARIDA], [CRAVO], etc. [FLOR] é
hiperônimo de [ROSA], [MARGARIDA], [CRAVO], [VIOLETA]. Por sua vez, esses
conceitos são hipônimos de [FLOR].
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
63
Uma característica dos hipônimos é que eles são incompatíveis: se uma
entidade é um cachorro, então ela não pode ser um gato, ou um cavalo. Se
uma entidade é uma violeta, ela não pode ser uma rosa ou uma margarida.
Por outro lado, se uma entidade pode ser chamada de cachorro, ela pode
também ser chamada de animal. Se uma entidade pode ser chamada de
violeta, ela pode ser chamada de flor.
As relações entre hipônimos e hiperônimos são, portanto, hierárquicas.
No nível mais baixo da hierarquia, temos os indivíduos no mundo. Vamos
imaginar indivíduos com os seguintes nomes: Galahad, Shadow, Cinque,
Fagulha, Odara, Peteca, Paloma e Mitra. No nível imediatamente acima,
vamos agrupar Galahad e Shadow como [COCKER SPANIEL]; Cinque e Fagulha
como [LABRADOR]; Odara e Peteca como [VIRA-LATA]; e Paloma e Mitra como
[PASTOR ALEMÃO]. No nível acima, vamos agrupar todas essas raças ([COCKER
SPANIEL], [LABRADOR], [VIRA-LATA], [PASTOR ALEMÃO]) como [CACHORRO]. No nível
mais acima ainda, temos [ANIMAL].
Os falantes podem designar entidades usando conceitos mais ou menos
detalhados, dependendo de seus objetivos. Por exemplo, eu posso dizer para
vocês que eu vivo cercada por animais. Mas posso dizer também, que eu vivo
cercada por cachorros. Posso ser mais específica, e dizer que eu vivo cercada
por pastores alemães. Mas existe um nível de conceito que é mais saliente, e
é chamado de nível básico. Nesse nível estão os conceitos pelos quais
designamos as entidades do mundo, quando não precisamos ser nem mais
genéricos, nem mais específicos. No caso da minha situação descrita acima,
seria mais natural dizer que eu vivo cercada por cachorros. Quando fazemos
uma viagem pela zona rural, vemos animais que chamamos de vacas. Nunca
nos referimos a eles como animais, nem como nelore, hereford ou zebu.
Em geral, os estudos que se interessam pelas categorias e por sua
organização partem da idéia de que os conceitos não são atômicos, podendo
ser entendidos como um feixe de traços semânticos. Assim, por exemplo, o
conceito da categoria [AVE] é um feixe de traços {animal, ovíparo, tem bico, tem
penas, voa}. Esse feixe de traços pode ser entendido como a caracterização
do membro prototípico da categoria. Nesse sentido, o gavião é um membro
prototípico da categoria [AVE], do mesmo modo que o pardal, o sabiá, a águia,
o urubu. E a galinha? Bem, a galinha tem várias das características de
categoria [AVE], mas não voa. Será que ela deixa então de ser uma ave?
Claro que não. Ela só não é um membro prototípico da categoria.
Experimentos têm demonstrado que as categorias do nível básico são
aquelas que têm um grande número de traços. Além disso, os traços de uma
categoria de nível básico não são compartilhados, como um todo, por outra
categoria do mesmo nível. Assim, o conjunto de traços que compõem o
conceito da categoria [CACHORRO] é diferente do conjunto de traços que
compõem o conceito da categoria [VACA]. Diferentemente, categorias do nível
abaixo do nível básico, ou seja, categorias mais específicas, como [PASTOR
ALEMÃO], [COCKER SPANIEL], [VIRA-LATA], para cachorros, e [NELORE], [HEREFORD],
[ZEBU] para vacas, compartilham um grande número de traços entre si. Já as
categorias do nível acima do nível básico, ou seja, mais abstratas têm
comparativamente poucos traços. Pensem na categoria [ANIMAL], por exemplo.
Quais seriam seus traços? Certamente algo bem genérico, como {ser vivo,
animado}.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
64
A questão da categorização levantada acima, e as relações entre
conceitos e categorias mais ou menos abstratas constituem uma das áreas
importantes da investigação semântica. Um outro assunto de interesse da
semântica é a ambigüidade. Existem alguns tipos de ambigüidade. Neste
curso, vamos tratar um pouco da ambigüidade lexical.
Como já vimos várias vezes, o signo lingüístico é o resultado da
associação de um significado (um conceito) a um significante (uma seqüência
de sons ou gestos). Em alguns casos, uma mesma seqüência de sons (ou
gestos) pode ter significados diferentes. Nesses casos, estamos diante de
signos homófonos ou homônimos. Esses signos podem criar ambigüidade, ou
seja, eles podem ser interpretados de mais de uma maneira. Considerem a
seguinte sentença do português:
(60) A manga já está cortada.
Essa sentença pode ser entendida de duas maneiras: ou que a manga
de uma camisa já está cortada e está pronta para ser montada e costurada, ou
que a fruta chamada manga já está cortada e está pronta para ser comida.
Isso acontece porque o português tem duas palavras que têm a mesma
seqüência de sons, mas que têm significados diferentes.
É claro que o contexto em que a sentença é pronunciada pode
desambigüá-la. Se usarmos uma sentença como (60) em um ateliê de costura,
provavelmente vamos estar nos referindo à parte de uma camisa. Por outro
lado, se usarmos essa sentença em uma cozinha, com quase toda certeza
vamos estar nos referindo à fruta.
Quando se fala de homonímia, é comum falar-se também de um outro
fenômeno semântico chamado polissemia. Um exemplo clássico de polissemia
é a palavra banco, nos seguintes contextos:
(61) Colocaram uma bomba no banco do lado da casa da Maria.
(62) Este banco foi fundado em 1890.
(63) Meu banco me trata muito bem.
A diferença entre homonímia e polissemia nem sempre é clara. Em
geral, consideram-se homônimos as expressões diacronicamente derivadas de
fontes lexicais diferentes, que, durante o percurso histórico, sofreram
mudanças e acabaram com a mesma forma. Expressões polissêmicas, por
outro lado, têm uma única fonte lexical, e são resultados de processos de
extensão de significados. Nas sentenças entre (61) e (63), o signo banco tem
três sentidos um pouco diferentes, mas todos relacionados entre si: em (61),
estamos tratando de um prédio comercial, em que uma instituição financeira
presta um determinado tipo de serviço; em (62), estamos falando de uma
instituição financeira; e, em (63), estamos falando do relacionamento que a
instituição financeira mantém com seus clientes. Nesses casos, fala-se que
uma interpretação é uma extensão do significado da outra. Assim, por
exemplo, chamamos de banco não só um determinado tipo de instituição, mas
também o prédio em que essa instituição funciona e os funcionários que lá
trabalham.
Nos dicionários, os homônimos ganham entradas separadas, enquanto
os sentidos polissêmicos de um determinado item lexical são listados sob a
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
65
entrada desse item. Mas, como dito acima, a distinção entre homonímia e
polissemia nem sempre é clara e existe muita discussão entre os semanticistas
a esse respeito.
A Semântica é uma disciplina muito abrangente e investiga uma
enormidade de questões, que nós não vamos poder tratar neste momento.
Quando vocês cursarem a disciplina intitulada Semântica e Pragmática, vocês
vão ter oportunidade de conhecer muitos outros tópicos relacionados ao
significados das expressões lingüísticas. Passemos, agora a ver rapidamente
do que trata a Pragmática.
Muitos lingüistas gostam de fazer uma separação entre Semântica, de
um lado, e Pragmática, de outro. De maneira geral, para eles, a Semântica
trata da significação lingüística independentemente do uso que se faz da
língua. A Pragmática, por outro lado, teria como objeto o estudo da
significação construída a partir do momento em que a língua é posta em uso,
ou seja, em uma determinada situação de fala. Outros lingüistas preferem não
estabelecer uma distinção tão clara entre as duas áreas de pesquisa, na
medida em que acreditam que a significação das expressões lingüísticas só se
constrói por inteiro quando a língua é posta em uso. Evidentemente, não
podemos entrar nessa discussão neste curso. Aqui, vamos apenas apontar
alguns fenômenos lingüísticos cujo significado indiscutivelmente só pode ser
determinado com a língua em uso. Um desses fenômenos se chama dêixis.
Existem três tipos de dêixis: a de pessoa, a de tempo, e a de lugar.
Vamos exemplificar esse fenômeno com a dêixis de pessoa. O que significam
os pronomes eu e você? Bem, podemos dizer que eu é o pronome de 1ª
pessoa, ou seja, da pessoa que fala, e que você é o pronome da 2ª pessoa, ou
seja do interlocutor. Mas, vejam o que acontece: em cada situação de fala, eu
e você se referem a pessoas diferentes! Ainda, numa mesma situação de fala,
as pessoas que participam da conversa às vezes são eu, e às vezes são você!
Imaginem uma conversa entre o Pedro e a Ana. Se o Pedro está falando, ele
se refere a si mesmo como eu e à Ana como você. Eventualmente, a Ana
pega a palavra. A partir daí, quando ela usar o pronome eu ela vai estar se
referindo a si mesma, e não ao Pedro. E quando ela usar o pronome você, ela
vai estar se referindo ao Pedro, e não a si mesma. Portanto, a significação
completa de pronomes como eu e você só vai ocorrer em uma determinada
situação de fala, na medida em que é só no momento em que essa situação de
fala se instala que se instauram a pessoa que fala e a pessoa com quem se
fala.
A dêixis é um assunto de muito interesse para a lingüística das línguas
de sinais. Na criação de discursos, os surdos fazem a sobreposição de várias
situações de fala, especialmente com a criação daquilo que tem sido chamado
de “espaço sub-rogado”. Esse espaço é aquele em que o surdo incorpora o
personagem de uma história que ele está contando. Quando ele sinaliza o
pronome de 1ª pessoa nesse espaço, ele não está se referindo a si mesmo,
que é quem está contando a história, mas ao personagem que ele está
representando. As línguas orais também fazem esse tipo de operação, por
meio daquilo que chamamos de discurso direto. Entretanto, nas línguas de
sinais, essa questão se torna particularmente interessante por envolver o uso
do espaço de sinalização e o mapeamento dos referentes dos pronomes nesse
espaço.
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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Um outro fenômeno lingüístico muito estudado pela Pragmática tem o
nome de implicatura conversacional. Entende-se que as conversações são
regidas por um princípio chamado princípio da cooperação, e que obedecem a
certas máximas. Em alguns casos, nós violamos algumas dessas máximas,
para propositadamente criar um efeito de sentido. Por exemplo, imagine que
um professor está no meio de uma aula, explicando um assunto bastante
complexo, e um aluno entra atrasado na sala. O professor interrompe sua aula
e diz para o aluno: “Você sabe que horas são?. Essa pergunta não tem
nenhuma relevância para a aula. Na realidade, o professor não está querendo
saber que horas são. Fazendo essa pergunta e violando uma das máximas
conversacionais, o professor está querendo é dar uma bronca no aluno pelo
atraso.
Uma outra máxima é violada na seguinte expressão, para criar um efeito
de sentido: “Faz séculos que eu estou dizendo que você precisa estudar!”
Certamente, nem o professor, nem o aluno têm vivido aqui por muitos séculos,
não é?
A ironia é muitas vezes decorrente de uma implicatura conversacional.
Por exemplo, imagine que um amigo seu foi transferido para uma cidade no
meio do deserto do Saara. Você pode brincar com ele, dizendo: “Puxa, que
legal! Você finalmente vai viver em um clima mais ameno que o nosso!”
Vejam como, em todas as circunstâncias apresentadas acima, só
podemos de fato entender o significado global das expressões lingüísticas se
considerarmos a situação em que a língua está sendo usada. Sem levarmos
em conta o contexto em que as sentenças estão sendo usadas, podemos
entender o sentido literal das palavras e das sentenças, mas não entendemos
o sentido mais sutil que está sendo construído especificamente pelo fato de
elas estarem sendo usadas em uma determinada situação de fala.
Um terceiro assunto de interesse da Pragmática são os atos de fala.
Existem alguns atos que fazemos, que se tornam realidade apenas no
momento em que pronunciamos ou sinalizamos uma determinada palavra ou
sentença. Por exemplo, quando é que uma promessa passa a existir?
Somente quando dizemos “eu prometo...”. E um juramento? E uma aposta? E
quando é que duas pessoas podem se considerar de fato casadas? Apenas
quando o juiz diz “eu vos declaro marido e mulher”! Notem que, nos atos de
fala, o sujeito do verbo é sempre o falante, ou seja, o verbo está sempre na
primeira pessoa. Essas sentenças são sempre afirmativas e estão sempre no
presente do indicativo.
Mas nem sempre os atos são tão explícitos assim. Por exemplo, se eu
digo para alguém algo como “eu vou dar um presente para você”, eu estou
realizando uma promessa implícita. É como se eu estivesse dizendo “eu
prometo que vou dar um presente para você”. Ou ainda, se eu estivesse
conversando com alguém e dissesse “tem um cachorro enorme correndo em
nossa direção”, eu poderia estar dando um aviso de perigo, e fazendo uma
sugestão para que nós nos escondêssemos. Por isso é que precisamos levar
em conta o contexto de uso da língua
Não é só a Pragmática que se preocupa em analisar a língua em uso.
Hoje em dia, existem várias teorias gramaticais que procuram centrar seus
estudos em fatos lingüísticos, obtidos a partir de registros de conversas
Introdução aos Estudos Lingüísticos Evani Viotti (USP)
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naturais, de contação de histórias e piadas, etc. Existe também uma grande
área de estudos lingüísticos, chamada Análise do Discurso, que analisa a
língua em uso. De maneira geral, a Análise do Discurso concentra seus
interesses nos textos escritos: há análises interessantes de discursos lidos por
políticos, de artigos de jornais e revistas, de textos publicitários, de poemas, de
letras de canções populares, de romances. Mas há uma outra corrente de
estudos chamada Análise da Conversação que tem como objeto de estudo a
língua falada (tanto as línguas orais quanto as línguas de sinais), mais
especificamente a conversação.
Infelizmente, não podemos no estender mais sobre esses assuntos
neste Curso de Introdução. Vamos, então, ficando por aqui, sabendo que
vocês vão aprofundar, nas disciplinas de Lingüística, algumas das idéias
introduzidas neste Curso, além de serem apresentados a outros assuntos de
grande interesse para aqueles que querem entender o que é a língua humana,
como ela é adquirida, como ela é posta em uso, como ela deve ser ensinada.

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